sábado, outubro 29, 2005

Cecília Meireles

Brevíssima apresentação desta magnífica poetisa brasileira, a pedido. E o meu poema favorito dela. Este post não tem imagem pois estou com sérios problemas na publicação. Poderão aceder a: http://www.secrel.com.br/jpoesia/ceciliameireles.html

Poetisa, professora, pedagoga e jornalista, cuja poesia lírica e altamente personalista, frequentemente simples na forma mas contendo imagens e simbolismos complexos, deu-lhe importante posição na literatura brasileira do século XX. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 07/11/1901 e veio a falecer na mesma cidade em 09/11/64. Casou-se duas vezes e deixou três filhas. Embora vivendo sob influência do Modernismo, apresenta ainda na sua obra heranças do simbolismo e técnicas do classicismo, gongorismo, romantismo, parnasianismo, realismo e surrealismo, razão pela sua poesia ser considerada intemporal.

Noturno
Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa?
E que valem as árvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?


Que vale o pensamento humano,
esforçado e vencido,
na turbulência das horas?


Que valem a conversa apenas murmurada,
a erma ternura, os delicados adeuses?


Que valem as pálpebras da tímida esperança,

orvalhadas de trêmulo sal?


O sangue e a lágrima são pequenos cristais sutis,

no profundo diagrama.


E o homem tão inutilmente pensante e pensado

só tem a tristeza para distingui-lo.


Porque havia nas úmidas paragens

animais adormecidos, com o mesmo mistério humano:

grandes como pórticos, suaves como veludo,

mas sem lembranças históricas, sem compromissos de viver.


Grandes animais sem passado, sem antecedentes,

puros e límpidos,

apenas com o peso do trabalho em seus poderosos flancos

e noções de água e de primavera nas tranqüilas narinas

e na seda longa das crinas desfraldadas.


Mas a noite desmanchava-se no oriente,

cheia de flores amarelas e vermelhas.

E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes,

erguiam no ar a vigorosa cabeça,

e começavam a puxar as imensas rodas do dia.


Ah! o despertar dos animais no vasto campo!

Este sair do sono, este continuar da vida!

O caminho que vai das pastagens etéreas da noite

ao claro dia da humana vassalagem!

quinta-feira, outubro 27, 2005

Mariza


Acha uma ousadia e uma tremenda responsabilidade o facto de a considerarem a nova diva do fado, a sucessora da Amália, voz de Portugal. Mas, se os seus curtos cabelos louros e os longos vestidos coloridos teimam em distanciá-la da típica imagem de fadista, a verdade é que basta ouvi-la cantar uma só nota para entender a razão de todas as comparações. Mariza (com "z", por teimosia do pai) teve um percurso muito pouco tradicional até atingir o topo da escalada musical. Na Mouraria, onde o fado parece ecoar pelas estreitas ruas carregado pela brisa, as notas entraram-lhe no sangue. E foi lá que ficaram até surgirem numa torrente despretensiosa de liberdade. Mariza faz questão de explicar que foi o fado que a escolheu. Mas talvez essa sua certeza advenha do facto de, como ela própria o diz, "o fado ser um sentimento e não propriamente uma música". E é com convicção que afirma que quando canta consegue sentir tudo. E é provavelmente essa simplicidade ao cantar que cativa todos aqueles que a ouvem. Quando os seus guitarristas começam a tocar, ela ainda não está no palco. Tocam com muita energia, abruptamente. Ainda mal se vê no palco, já a sua voz se ergue forte, então ela aparece, alta, sob a saia longa. É uma nova estrela do fado, é claro. O público apercebe-se disso imediatamente. Mantém o contacto com o público durante o tempo todo. E se as pessoas batem palmas com pouca força, ela fitando o público, lentamente eleva a palma da mão à orelha num movimento de escuta. Logo os aplausos se tornam mais fortes. Ela sorri. Há uma inegável força e um genuíno êxtase na sua voz quando actua.

Deixo-vos com uma das mais belas músicas interpretada por ela. Este poema faz-me lembrar Eurico, o Presbítero. Tem o poder de me fazer sempre sorrir pois, quando era pequena (e tinha acabado de ler o livro) dizia muitas vezes que me casaria com quem também visse a beleza daquele romance - a bela ingenuidade! - (tudo isto porque não havia ninguém que tivesse gostado de o ler...) mas hoje... será que já encontrei quem ame aquele cavaleiro negro tanto quanto eu?! hummm... :)
Cavaleiro Monge
Fernando Pessoa

Do vale à montanha
Da montanha ao monte
Cavalo de sombra
Cavaleiro monge
Por casas, por prados
Por quinta e por fonte
Caminhais aliados
Do vale à montanha
Da montanha ao monte
Cavalo de sombra
Cavaleiro monge
Por penhascos pretos
Atrás e defronte
Caminhais secretos
Do vale à montanha
Da montanha ao monte
Cavalo de sombra
Cavaleiro monge
Por plainos desertos
Sem ter horizontes
Caminhais libertos
Do vale à montanha
Da montanha ao monte
Cavalo de sombra
Cavaleiro monge
Por ínvios caminhos
Por rios sem ponte
Caminhos sozinhos
Do vale à montanha
Da montanha ao monte
Cavalo de sombra
Cavaleiro monge
Por quanto é sem fim
Sem ninguém que o conte
Caminhais em mim.

domingo, outubro 23, 2005

Sebastião Salgado


(Fotografia tirada por Sebastião Salgado)

Natural de Aimorés, Minas Gerais, onde nasceu em 1944, Sebastião Ribeiro Salgado é o sexto e o único filho homem de uma família com oito crianças. Filho de um pecuarista, estudou economia no Brasil entre 1964 e 67. Fez mestrado na mesma área na Universidade de São Paulo e na Vanderbilt University (EUA). Após completar seus estudos para o doutorado em economia pela Universidade de Paris, em 1971, trabalhou para a Organização Internacional do Café até 1973. Depois de levar emprestada a câmera de sua mulher, Lélia, para uma viagem a África, Salgado decidiu, em 1973, trocar a economia pela fotografia...

Como fotógrafo, Sebastião Salgado teve oportunidade de estabelecer contactos prolongados com pessoas de todo o mundo. Para Salgado, seu trabalho nasce desses contatos. "A fotografia não é feita pelo fotógrafo", declara numa das raras vezes em que fala sobre o seu trabalho." Sua filosofia combina com o seu senso pessoal de economia: viajando em terceira classe, cortando o seu filme e trabalhando 16 horas por dia revelando milhares de provas por conta própria, Salgado conseguiu financiar as suas numerosas e prolongadas reportagens nos países do Sahel - Chade, Etiópia (incluindo a disputada província do Tigre), Mali e Sudão - pela pequena soma de 20 mil dólares, dos quais a ampliação constitui a maior despesa. Salgado prefere esse método ao de outros profissionais da media mais afluente. Observa, por exemplo, que nas três ou quatro semanas que passou num campo de refugiados na Etiópia, mais de 40 equipas de televisão vieram e partiram rapidamente para fazer reportagens sobre multidões de famintos e doentes. Uma equipa dos Estados Unidos alugou um camião do governo, passou duas horas na região e partiu. Nos países simbolicamente menos importantes do Sahel, Salgado encontrou somente um jornalista. Para o fotógrafo, estas são reportagens abreviadas, que não dão "tempo algum para entender a realidade que se está fotografando". Ao contrário, estes jornalistas "levam o que trouxeram". Salgado compara sua abordagem à mais famosa filosofia de 35mm, a do "momento decisivo" de Henri Cartier-Bresson. Em 1952, Cartier-Bresson, um dos membros fundadores da antiga agência de Salgado, a Magnum Photos, expressou seu frequentemente citado credo pessoal no volume clássico das suas fotografias, O Momento Decisivo: "Para mim, a fotografia é o reconhecimento simultâneo, numa fracção de segundo, do significado de um acontecimento e da organização exacta das formas que o expressam." Para Salgado, essa abordagem resulta numa relação fotógrafo-fotografado comparável a uma tangente equilibrada perfeitamente sobre um círculo. O resultado é elegante, dramático e eficaz. Mas para Salgado é preciso entrar no círculo, de certa forma "tornando-se" o fotografado ou, no mínimo, fazendo um esforço para compreender sua existência. Metáforas geométricas à parte, a abordagem de Salgado é intuitiva e de forte cunho emocional. Embora fale quatro línguas (português, espanhol, francês e inglês) e tire proveito de longas conversas com as pessoas que encontra, seu trabalho não começa a partir de uma análise intelectual, e sim de um calor pessoal e uma reverência pela dignidade essencial das pessoas. Na sua respeitosa empatia, essa abordagem aproxima-se do sentido de relacionamento entre o Eu e o Outro de Martin Buber, na qual num momento o Outro se torna a totalidade do mundo do Eu. Seu ponto de vista deriva igualmente da visão do economista influenciado pelo marxismo. Como coloca Salgado, "fotografa-se com toda a carga ideológica". Uma empatia consciente e a marcante beleza de tantas das suas imagens transcendem o padrão das pílulas fotojornalísticas, que reduzem o fotografado ao grau da calamidade sofrida. O vocabulário padrão acaba por tornar o humano anónimo, especialmente no Terceiro Mundo, onde o volume de "vítimas" intercambiáveis é o factor que determina a cobertura da imprensa. Nesse processo, as pessoas tendem a ser despojadas de sua própria humanidade e complexidade, incluindo sua cultura e os recursos que lhes permitem a sua autodeterminação. Esse mecanismo faz com que o leitor se sinta tocado por alguns segundos, até ser acometido pela "síndrome da compaixão" e passar para o próximo segmento de imagens bidimensionais. Passando mais tempo com as pessoas, Salgado passa a entender melhor o seu sofrimento e a sua força que, às vezes, adquirem uma qualidade espiritual. Imagens monumentais, sua captura da vastidão da natureza, a iluminação claro-escuro e os tons que parecem vir de uma profunda escuridão, tornando palpável a pele causticada de um rosto, contribuem para uma perspectiva mais transcendente e duradoura da posição desses homens e mulheres na nossa história. A intenção documental do fotógrafo pode ter raízes nostálgicas, mas as imagens em si contêm uma presença vital. O fotógrafo enfrenta um dilema curioso. Cartier-Bresson, alternando fases de demissão do impulso documental em troca do drama visual e da captura do desenrolar de uma coreografia, conhecia bem a experiência de constantemente deparar-se com imagens reais/irreais, o inevitável cruzamento entre ficção e não-ficção. A abordagem documental de Salgado, se mais consistente, também contém um tratamento imaginário, um grau de interpretação que transcende o carácter aparentemente casual da fotografia e dá profundidade à sua obra. Enquanto respeita os factos de uma situação, Salgado tenta recriar, por intermédio da metáfora visual, o que considera representar o drama humano essencial da história - tornando visível o invisível. O trabalho de Salgado, embora confinado ao momentâneo pelo mecanismo da câmera, não celebra ou captura a arbitrariedade de um instante ou sua manifestação física. Ao contrário, sua obra procura articular a eternidade do momento e sua profundidade efémera e trazer à tona uma presença mística, envolvente. Essa característica é compartilhada por outros artistas latino-americanos, também atraídos por uma perspectiva comumente denominada realismo mágico. De igual modo, ao enfatizar a singularidade do indivíduo nas suas imagens, Salgado também sublima sua universalidade. "Somos todos um povo - provavelmente um só homem."

(Adaptação do "Documentarista Lírico", publicado no livro Um Incerto Estado de Graça (Caminho), 1990. Copyright Fred Ritchin 1990.

terça-feira, outubro 18, 2005

Paula Rego (1935)

Num país em que a arte continua a ser vista como produção de uma elite e os casos de sucesso são escassos, Paula Rego é indubitavelmente um dos mais valiosos exemplos de pintura portuguesa. Mas suscita alguma polémica o facto de não residir em Portugal, mas em Inglaterra, e a principal galeria onde expõe ser uma galeria inglesa!
A proximidade do trabalho da pintora com a linguagem do automatismo gestual aparece desde cedo, mercê da influência do Surrealismo e Dadaísmo. Paula Rego deixou-se fascinar pelo automatismo surrealista e privilegiou a arte produzida a partir da imaginação não dirigida, permitindo um jogo mais livre das faculdades e rompendo com o habitual determinismo que se apresenta na relação entre o pensamento e o gesto. É a partir deste contexto do automatismo e da produção de uma imagética espontânea, tal como foi defendida pelos principais surrealistas, não apenas ao nível da escrita, mas aplicando-se também às artes plásticas, que deve ser lida a obra de Paula Rego.
Codificando e comunicando as histórias mediante imagens visuais fortíssimas, Paula Rego raramente procura encontrar narrativas já estabelecidas, preferindo trabalhar com histórias que fazem parte de si mesma, com as quais cresceu, conferindo-lhes significados e reconhecendo-as como repositórios de conhecimento e de poder exteriores aos modelos tradicionais, fazendo-as funcionar mais pela manipulação e subversão, do que propriamente pela dominação e uso convencional. Abrindo-se à possibilidade de um múltiplo funcionamento dessas narrativas, opta por um reconhecimento da sua autonomia e segue-as nesse movimento, à sua vontade própria. Muitas vezes segue, também, (re)trabalhando e (re)combinando materiais que, gerando outros conjuntos, funcionam como chaves ou aberturas da experiência individual ou partilhada. Os motivos estabelecem cadeias e sequências de conteúdos significativos, comunicando de quadro para quadro, do artista para o quadro e para nós.
Muitas das histórias que a pintora cria são tecidas em torno da família e das relações internas que se criam no seu interior. Paula Rego pinta crianças que lutam com os pais para alcançarem a sua identidade própria, constituindo a sua fragilidade e simultânea ferocidade um reconhecimento das pulsões edipianas e inconscientes, que aparecem sob a forma de figuras humanas e animais, simbolizando os conflitos de ordem sexual.

A fisicidade das suas figuras femininas é outro elemento iconográfico que marca a violência da pulsão sexual. A inquietação, como se pode ver, é o elemento central de toda a sua obra, crivada nos paradoxos de que o quadro se faz revelação. O simbolismo e o dualismo sempre presentes, na sua ambiguidade, são magistralmente trabalhados enquanto imagens pictóricas, prometendo-nos um acesso que nunca nos será inteiramente oferecido. Persiste, nas suas imagens, o gosto da decifração, pelo (re)trabalhar e contínua redisposição dos motivos iconográficos que nos abrem as suas obras, como chaves de significado, permitindo essa remissão de um quadro a outro, da autora para o quadro e, por sua vez, do quadro até nós, esperando a nossa atenção!
Maria João Cantinho (Adaptado)

segunda-feira, outubro 17, 2005

Primeiro autor para Descobrir - António Ramos Rosa

Breve Biografia:
1924 - Nasceu em Faro. Esteve ligado às revistas Cadernos do Meio-Dia, Árvore e Cassiopeia. Tradutor, crítico literário, ensaísta e poeta. Além de uma grande depuração da palavra, reflecte sobre o fenómeno poético. (De acordo com o Centro Virtual Camões)
Breve Análise: (por Estela Guedes Ramos):
António Ramos Rosa, como outros poetas que começaram a publicar antes do 25 de Abril, manifesta na sua poesia linhas temáticas que, apesar do regime de censura, são politicamente muito claras. Esses temas dizem respeito, como não podia deixar de ser, e tendo ele a experiência da tesoura, à falta de liberdade, e por isso à prisão da vida mesquinha de todos os funcionários cansados, sob a ditadura de Salazar. É ao desejo de liberdade que se aspira quando nos poemas aparecem gaiolas, prisões e pássaros, como acontece precisamente no conhecido Poema dum funcionário cansado, que remata com “palavras soterradas na prisão” da vida. Essa reclamação aparece com grande veemência no redundante título da colectânea de ensaios, “Poesia, liberdade livre”.
Parece que no meio das muitas correspondências poéticas, a poesia é o mesmo que liberdade. Mas se a liberdade da poesia é uma liberdade livre, quer dizer que fora dela o não é. Admitindo-se assim que há uma liberdade que não é livre, verificamos que entre os termos “liberdade” e “livre” não existe total correspondência. Ou então só existe na poesia.
A falta de liberdade não se limita à prisão do corpo, e por isso o poeta não a perde como linha de força em mudanças de regime político, nem nos confins dos primeiros poemas. É um tema permanente, ontológico, ele atravessa toda a obra, unindo linguagem e ser numa só natureza ou estado de correspondência. Declara António Ramos Rosa, numa entrevista: “A minha poesia é cognitiva e metapoética. Se a metafísica é uma forma de conhecimento do universo, das coisas, da linguagem, então sim, tenho essa inquietação. Os meus textos não se reduzem a um âmbito circunstancial. Mas quando escrevo um poema, o tema que se me impõe imediatamente é o da palavra, da linguagem. Desde sempre.”
A liberdade que o poeta reclama para a palavra ultrapassa a liberdade de expressão, porque o ser e a palavra não se distinguem na sua perspectiva ontológica: o poeta escreve sol da mesma maneira que as árvores falam, isto é, o poeta cria mundo com as palavras. Dos diversos mundos ou diversas categorias de realidade, entre elas a criada pela linguagem, ocupou-se Karl Popper. Há de facto uma dimensão cognitiva na poesia de António Ramos Rosa, que decorre da perspectiva filosófica com que vê a comunicação, e não só humana, pois também admite os códigos da Natureza.
Porque a Natureza fala, o poeta escreve: “Conheço as palavras das árvores”. O homem é um ser de linguagem, todo o seu afecto, saber e história residem nela. Por isso, ao interrogar a palavra, é o mundo e a vida que questiona. E também por isso a liberdade reclamada para a palavra é a liberdade de ser, e não apenas a de ser proferida ou impressa. Porque o universo é sentido como linguagem, a poesia tem nele um referente e um interlocutor, e ao poeta, o primeiro tema que se lhe impõe é o da palavra. É assim que se estabelece, entre a Natureza e a palavra, e entre a linguagem e o homem, a maior de todas as correspondências.
Mas deixemos a porta aberta, neste domínio das correspondências, em que verde é a letra “u”, como escreve Rimbaud, a transmutações mais fáceis do que as alquímicas: quando num poema falamos desse assunto, nós, que escrevemos em português, temos também em mente e no plano de significação imediata dos termos, a correspondência amorosa, o estabelecimento de elos afectivos entre leitor e autor. O poeta assinou um pacto consigo mesmo e com o público, tem um compromisso ao qual sente que deve responder. E a liberdade faz parte dessa relação de intersubjectividade, em que de um lado existe uma expectativa e do outro o desejo de correspondência.
Escrever é procurar corresponder ainda que não se saiba a quê ou se esse quê existe. A nossa liberdade nasce de uma incerteza radical. E a sua metamorfose é a invenção de um espaço de correspondências que visam uma esfera inviolável.
Vivemos num mundo prático, utilitário, economicista. O nosso cérebro, mesmo poeta, só se satisfaz com argumentos contabilizáveis. Por isso, ainda o poeta vivia no Algarve, fez contas à vida, interrogou-se sobre o sentido da sua e do que escrevia. Olhando para o resultado das contas, tomou a decisão que lhe pareceu mais justa. Sabemos qual foi a opção de António Ramos Rosa: a liberdade do franciscanismo poético. Não uso sem critério a imagem de S. Francisco: na Natureza dos poemas não faltam pássaros com os quais o poeta comunica. E apesar de não transparecer na obra nenhum tema católico, a verdade é que esvoaçam anjos nela. Por muito que sejam Anjos de terra, e o poeta esclareça que os anjos que conhece são de erva e de silêncio, anjos são anjos, e vivem na cor da esperança.
Sem emprego, sem cargos públicos, a vida, dedicada apenas à arte, só podia oferecer-lhe dificuldades materiais. No entanto, essa marginalidade franciscana não impediu Ramos Rosa de ter voz activa nas convulsões políticas e sociais em geral, e em particular nas anteriores à revolução portuguesa do 25 de Abril. Pertenceu ao MUD juvenil, embora nunca tivesse militado em nenhum partido político. Por ter ido receber Maria Lamas a Portimão, com outros intelectuais, foi preso pela PIDE, a Polícia política de então.
Entende-se assim que o desprendimento por empregos ou cargos públicos, e mesmo a recusa em receber um prémio do SNI, correspondeu à rejeição de um sistema político anti-democrático. Se S. Francisco falava às aves e Santo António aos peixes, é porque com os homens não era possível o diálogo.
Insisto porém em que o tema da liberdade, embora vinculado a estas experiências de vida, não está preso a elas – é mais amplo e mais profundo. Eduardo Pitta considera os ensaios “emblemáticos de uma obra centrada na noção de liberdade”. Essa centralidade constitui uma rede que põe todos os poemas em comunicação, não apenas próprios como alheios. Tal como a linguagem, também a liberdade é interpelada quanto ao que de facto é e quanto aos seus limites.

A liberdade, em Ramos Rosa, é a possibilidade de sermos o que queremos ser. Resultado da soma de querer e poder, a liberdade é tão difícil de alcançar que se projecta no plano da utopia. Nos versos que acabei de citar, a abolição no branco não é absoluta: ela abre a porta à renovação, e por conseguinte ao esplendor cromático da vegetação.
Se não podemos dizer que António Ramos Rosa seja um poeta católico, apesar dos seus anjos, também não poderemos dizer que seja um poeta hermético. Mas que há na sua poesia uma obra ao verde, bem primaveril, lá isso, há...
A poesia de António Ramos Rosa deambula entre conceptualismo e pintura. Certos poemas são muito impressionistas no colorido, e já sabemos que o poeta também é artista visual e também faz crítica de pintura. Não admira assim que nos surja uma criação poética estimulada pela percepção da luz e das cores. Por vezes, à semelhança da pintura moderna, mais voltada para o efeito plástico dos materiais do que para o que possam representar, as palavras são cores, pincelando a página de verde, azul, branco, negro e amarelo, que simultaneamente produzem música...
Espero que este texto tenha "aberto o apetite" para descobrir este grande escritor e domador de palavras... ainda há muito a dizer sobre ele!