Num país em que a arte continua a ser vista como produção de uma elite e os casos de sucesso são escassos, Paula Rego é indubitavelmente um dos mais valiosos exemplos de pintura portuguesa. Mas suscita alguma polémica o facto de não residir em Portugal, mas em Inglaterra, e a principal galeria onde expõe ser uma galeria inglesa!
A proximidade do trabalho da pintora com a linguagem do automatismo gestual aparece desde cedo, mercê da influência do Surrealismo e Dadaísmo. Paula Rego deixou-se fascinar pelo automatismo surrealista e privilegiou a arte produzida a partir da imaginação não dirigida, permitindo um jogo mais livre das faculdades e rompendo com o habitual determinismo que se apresenta na relação entre o pensamento e o gesto. É a partir deste contexto do automatismo e da produção de uma imagética espontânea, tal como foi defendida pelos principais surrealistas, não apenas ao nível da escrita, mas aplicando-se também às artes plásticas, que deve ser lida a obra de Paula Rego.
Codificando e comunicando as histórias mediante imagens visuais fortíssimas, Paula Rego raramente procura encontrar narrativas já estabelecidas, preferindo trabalhar com histórias que fazem parte de si mesma, com as quais cresceu, conferindo-lhes significados e reconhecendo-as como repositórios de conhecimento e de poder exteriores aos modelos tradicionais, fazendo-as funcionar mais pela manipulação e subversão, do que propriamente pela dominação e uso convencional. Abrindo-se à possibilidade de um múltiplo funcionamento dessas narrativas, opta por um reconhecimento da sua autonomia e segue-as nesse movimento, à sua vontade própria. Muitas vezes segue, também, (re)trabalhando e (re)combinando materiais que, gerando outros conjuntos, funcionam como chaves ou aberturas da experiência individual ou partilhada. Os motivos estabelecem cadeias e sequências de conteúdos significativos, comunicando de quadro para quadro, do artista para o quadro e para nós.
Muitas das histórias que a pintora cria são tecidas em torno da família e das relações internas que se criam no seu interior. Paula Rego pinta crianças que lutam com os pais para alcançarem a sua identidade própria, constituindo a sua fragilidade e simultânea ferocidade um reconhecimento das pulsões edipianas e inconscientes, que aparecem sob a forma de figuras humanas e animais, simbolizando os conflitos de ordem sexual.
A fisicidade das suas figuras femininas é outro elemento iconográfico que marca a violência da pulsão sexual. A inquietação, como se pode ver, é o elemento central de toda a sua obra, crivada nos paradoxos de que o quadro se faz revelação. O simbolismo e o dualismo sempre presentes, na sua ambiguidade, são magistralmente trabalhados enquanto imagens pictóricas, prometendo-nos um acesso que nunca nos será inteiramente oferecido. Persiste, nas suas imagens, o gosto da decifração, pelo (re)trabalhar e contínua redisposição dos motivos iconográficos que nos abrem as suas obras, como chaves de significado, permitindo essa remissão de um quadro a outro, da autora para o quadro e, por sua vez, do quadro até nós, esperando a nossa atenção!
Maria João Cantinho (Adaptado)