Foto: cedida pela autora do texto
Give Literature a Chance
A Literatura e outras áreas ligadas às Humanidades como espécies em vias de extinção e a sua sobrevivência na formação inicial do Ensino Superior. Problemas, propostas e desafios, são assunto no texto de Maria Antónia Lima, que o UELINE e o Cultura publicam.
Give Literature a Chance
Talvez somente a melodia utópica da famosa canção de John Lennon, Give Peace a Chance, nos possa hoje servir de acompanhamento e inspiração na defesa de uma área de estudos em vias de perigosa e inaceitável extinção, como é aliás o caso de uma série de outras áreas disciplinares afectas às Humanidades, que inexplicavelmente se tornaram alvo fácil de caçadores furtivos, que desejam certamente permanecer ocultos por detrás de cerradas sebes donde nascem certas medidas reformistas, que teimam em crescer desordenadamente num emaranhado por vezes caótico que impede a visão e confunde o pensamento.
Com uma tão antiga e prestigiada área de arquitectura paisagista e de outras áreas científicas que promovem o equilíbrio ambiental e preservam o património natural, talvez a Universidade de Évora devesse dar o seu contributo na defesa do equilíbrio das espécies que, no seu caso, são constituídas pelo conjunto das suas próprias áreas científicas dando, ao país e ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, um bom exemplo na defesa desse património cultural e intelectual, que actualmente se encontra em risco de sobrevivência. O facto de possuirmos um Reitor especialmente vocacionado, pela sua formação científica, para a protecção de espécies em extinção, leva-nos a acreditar que este seu adequado perfil o tornará sensível a este apelo.
Como se sabe, proteger, hoje em dia, a Literatura ou qualquer área das Ciências Humanas, não é tarefa fácil, pois como acontece com outras formas de existência em perigo, esta área de estudos sobrevive actualmente com muita dificuldade e ainda sobreviverá pior com a campanha de má publicidade que alguns responsáveis e muitos órgãos de informação têm desenvolvido, repetindo até à exaustão a ideia de que se deverá acabar com cursos que não promovam emprego, ou que não produzam postos de trabalho. Admitindo até que tenham dados exactos que lhes garantam esta difícil distinção, no actual negro cenário da empregabilidade, esquecem-se, todavia, essas vozes que não é a Universidade quem promove esta oferta de emprego e que às empresas e à sociedade se devem igualmente pedir reformas, alterações de mentalidade e adaptações à mudança dos tempos, que noutros países mais avançados tem exigido, por exemplo, que se contratem licenciados em Filosofia e noutros cursos de Ciências Humanas, para diversos lugares e até para os conselhos administrativos de importantes empresas. A adesão à Declaração de Bolonha também exige saber se, nos restantes países da Europa, se encerram departamentos de Humanidades, com a justificação de não promoverem emprego. Pelo que sabemos todos eles continuam em funcionamento, porque a mentalidade dos alunos que os procuram não se baseia em utilitarismos de vistas curtas, mas antes se orienta pelos seus mais essenciais desejos de formação e de vocação.
Em Portugal, tudo se rege pela lei do mais forte e do mais expedito, justificando assim a inexistência de eficazes sistemas de protecção. Com o ensino da Literatura não podia ser diferente. Trata-se de aplicar os princípios da lei da sobrevivência a uma área científica que desde tempos imemoriais tem sido protegida não por motivos diletantes, mas exactamente com o objectivo de que todo o ecossistema do conhecimento humano permaneça em equilíbrio. Sem a sua presença nas Universidades, depressa estas se tornariam lugares inóspitos dominados pelas espécies de conhecimento mais robustas, que mais utilidade produzem e que mais se reproduzem. Os que não servem para nada, no sentido malthusiano e utilitarista, mas que são tudo num sentido existencial mais profundo, são actualmente considerados inúteis, porque incapazes de reprodução estando assim inevitavelmente condenados ao desaparecimento, como um simples louva-a-deus que, após cumprir a sua missão reprodutiva, é despedido do reino animal, sem subsídio de desemprego nem reforma garantida, restando-lhe apenas a simples aniquilação, que, no entanto, mantém a sobrevivência da espécie. Esta condenação mostra bem a crueldade de que a Natureza é capaz para se auto-regular, sendo totalmente absurdo que a reforma do Ensino Superior lhe imite os seus procedimentos, impedindo o direito à existência de certas áreas, que desempenham e devem continuar a desempenhar um papel imprescindível no sistema educativo. Que as formigas, os louva-a-deus e os pirilampos não se insurjam contra o destino cruel que a Natureza lhes deu, ainda se pode compreender, mas o que será totalmente incompreensível é que o homem, ser racional habituado a dominar a Natureza até limites do aceitável, se submeta agora a argumentos tão primitivos e inspirados nas leis mais elementares que o seu conhecimento científico sempre lhe tem permitido contrariar, sendo igualmente inadmissível que no séc. XXI se raciocine de acordo com princípios científicos do séc. XIX. Num tempo em que princípios de inteligência emocional, e não de darwinismo utilitário, orientam as mentes mais interessantes e, por isso, mais úteis da nossa cultura, exige-se que os espíritos responsáveis pelas actuais reformas no Ensino Superior se orientem também pela necessidade de proceder a uma combinação entre o científico e o artístico, para que de futuro a frieza do raciocínio possa, de facto, ser temperada pelo calor da intuição e da emoção.
Para atingir este objectivo, uma medida se nos afigura urgente. Seguindo o bom exemplo de algumas das melhores universidades internacionais de referência, um número determinado de opções do 1º ciclo dos cursos de Ciências Exactas e Naturais deveria ser destinado às Ciências Humanas e Artes, devendo ser obrigatório que uma dessas opções fosse a Literatura, podendo o aluno optar entre várias literaturas de diferentes nacionalidades e de diferentes temáticas . Penso que seria a melhor forma de provar, como o demonstrou Nabokov, nas suas aulas de Literatura, que esta "não nasceu quando um rapaz a gritar «Lobo! Lobo!» saiu a correr do vale de Neanderthal com um grande lobo na sua peugada: a literatura nasceu quando um rapaz apareceu a gritar «Lobo! Lobo!» e não havia lobo nenhum a persegui-lo. O facto de o pobre diabo, porque mentiu demasiadas vezes, ter acabado por ser comido por uma fera verdadeira é perfeitamente acidental. Mas eis o que é importante. Entre o lobo no meio do capim e o lobo no conto há um difuso mediador. Esse mediador, esse prisma, é a arte da literatura." Nestes termos, a Literatura inventa a Natureza, porque a conhece demasiado bem e a respeita nos seus maiores perigos. Ela inventa-a, e todo aquele que não experimentar o contacto com a Literatura ficará para sempre privado de desenvolver as suas faculdades de invenção e imaginação de que a própria criatividade científica tanto depende, para entender esse mesmo mundo natural.
A Literatura tem demasiada consciência não só da beleza da Natureza, mas também da sua crueldade, para ignorar a força das suas terríveis leis. É exactamente nos momentos, em que essas leis mais põem em perigo a sua existência, que ela deve mostrar o seu maior valor e utilidade. Deve estar atenta às deslumbrantes cores protectoras das borboletas e das aves, para não ignorar o sofisticado sistema de feitiços e astúcias da Natureza. Deve-se inspirar nos seus truques de ilusionismo, para não se tornar vítima dessa ilusão.
Não nos deixemos, pois, enganar pela Natureza e pelas suas inevitáveis leis de extinção. Deixemos que a Literatura nos sirva para as contrariar no que elas têm de mais radical e definitivo. Alcancemos, através dela, o poder de reagir contra a morte ou contra toda e qualquer forma de aniquilamento, garantindo não só a nossa simples sobrevivência, mas muito especialmente a defesa da imortalidade do espírito humano. E se, depois de tudo isto, alguém ainda duvidar da utilidade da Literatura, não nos responsabilizamos pelo seu provável regresso ao Neanderthal e à sã convivência com lobos, que este retorno às origens decerto lhe proporcionará.
Maria Antónia Lima, Departamento de Linguística e Literaturas da Universidade de Évora
Talvez somente a melodia utópica da famosa canção de John Lennon, Give Peace a Chance, nos possa hoje servir de acompanhamento e inspiração na defesa de uma área de estudos em vias de perigosa e inaceitável extinção, como é aliás o caso de uma série de outras áreas disciplinares afectas às Humanidades, que inexplicavelmente se tornaram alvo fácil de caçadores furtivos, que desejam certamente permanecer ocultos por detrás de cerradas sebes donde nascem certas medidas reformistas, que teimam em crescer desordenadamente num emaranhado por vezes caótico que impede a visão e confunde o pensamento.
Com uma tão antiga e prestigiada área de arquitectura paisagista e de outras áreas científicas que promovem o equilíbrio ambiental e preservam o património natural, talvez a Universidade de Évora devesse dar o seu contributo na defesa do equilíbrio das espécies que, no seu caso, são constituídas pelo conjunto das suas próprias áreas científicas dando, ao país e ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, um bom exemplo na defesa desse património cultural e intelectual, que actualmente se encontra em risco de sobrevivência. O facto de possuirmos um Reitor especialmente vocacionado, pela sua formação científica, para a protecção de espécies em extinção, leva-nos a acreditar que este seu adequado perfil o tornará sensível a este apelo.
Como se sabe, proteger, hoje em dia, a Literatura ou qualquer área das Ciências Humanas, não é tarefa fácil, pois como acontece com outras formas de existência em perigo, esta área de estudos sobrevive actualmente com muita dificuldade e ainda sobreviverá pior com a campanha de má publicidade que alguns responsáveis e muitos órgãos de informação têm desenvolvido, repetindo até à exaustão a ideia de que se deverá acabar com cursos que não promovam emprego, ou que não produzam postos de trabalho. Admitindo até que tenham dados exactos que lhes garantam esta difícil distinção, no actual negro cenário da empregabilidade, esquecem-se, todavia, essas vozes que não é a Universidade quem promove esta oferta de emprego e que às empresas e à sociedade se devem igualmente pedir reformas, alterações de mentalidade e adaptações à mudança dos tempos, que noutros países mais avançados tem exigido, por exemplo, que se contratem licenciados em Filosofia e noutros cursos de Ciências Humanas, para diversos lugares e até para os conselhos administrativos de importantes empresas. A adesão à Declaração de Bolonha também exige saber se, nos restantes países da Europa, se encerram departamentos de Humanidades, com a justificação de não promoverem emprego. Pelo que sabemos todos eles continuam em funcionamento, porque a mentalidade dos alunos que os procuram não se baseia em utilitarismos de vistas curtas, mas antes se orienta pelos seus mais essenciais desejos de formação e de vocação.
Em Portugal, tudo se rege pela lei do mais forte e do mais expedito, justificando assim a inexistência de eficazes sistemas de protecção. Com o ensino da Literatura não podia ser diferente. Trata-se de aplicar os princípios da lei da sobrevivência a uma área científica que desde tempos imemoriais tem sido protegida não por motivos diletantes, mas exactamente com o objectivo de que todo o ecossistema do conhecimento humano permaneça em equilíbrio. Sem a sua presença nas Universidades, depressa estas se tornariam lugares inóspitos dominados pelas espécies de conhecimento mais robustas, que mais utilidade produzem e que mais se reproduzem. Os que não servem para nada, no sentido malthusiano e utilitarista, mas que são tudo num sentido existencial mais profundo, são actualmente considerados inúteis, porque incapazes de reprodução estando assim inevitavelmente condenados ao desaparecimento, como um simples louva-a-deus que, após cumprir a sua missão reprodutiva, é despedido do reino animal, sem subsídio de desemprego nem reforma garantida, restando-lhe apenas a simples aniquilação, que, no entanto, mantém a sobrevivência da espécie. Esta condenação mostra bem a crueldade de que a Natureza é capaz para se auto-regular, sendo totalmente absurdo que a reforma do Ensino Superior lhe imite os seus procedimentos, impedindo o direito à existência de certas áreas, que desempenham e devem continuar a desempenhar um papel imprescindível no sistema educativo. Que as formigas, os louva-a-deus e os pirilampos não se insurjam contra o destino cruel que a Natureza lhes deu, ainda se pode compreender, mas o que será totalmente incompreensível é que o homem, ser racional habituado a dominar a Natureza até limites do aceitável, se submeta agora a argumentos tão primitivos e inspirados nas leis mais elementares que o seu conhecimento científico sempre lhe tem permitido contrariar, sendo igualmente inadmissível que no séc. XXI se raciocine de acordo com princípios científicos do séc. XIX. Num tempo em que princípios de inteligência emocional, e não de darwinismo utilitário, orientam as mentes mais interessantes e, por isso, mais úteis da nossa cultura, exige-se que os espíritos responsáveis pelas actuais reformas no Ensino Superior se orientem também pela necessidade de proceder a uma combinação entre o científico e o artístico, para que de futuro a frieza do raciocínio possa, de facto, ser temperada pelo calor da intuição e da emoção.
Para atingir este objectivo, uma medida se nos afigura urgente. Seguindo o bom exemplo de algumas das melhores universidades internacionais de referência, um número determinado de opções do 1º ciclo dos cursos de Ciências Exactas e Naturais deveria ser destinado às Ciências Humanas e Artes, devendo ser obrigatório que uma dessas opções fosse a Literatura, podendo o aluno optar entre várias literaturas de diferentes nacionalidades e de diferentes temáticas . Penso que seria a melhor forma de provar, como o demonstrou Nabokov, nas suas aulas de Literatura, que esta "não nasceu quando um rapaz a gritar «Lobo! Lobo!» saiu a correr do vale de Neanderthal com um grande lobo na sua peugada: a literatura nasceu quando um rapaz apareceu a gritar «Lobo! Lobo!» e não havia lobo nenhum a persegui-lo. O facto de o pobre diabo, porque mentiu demasiadas vezes, ter acabado por ser comido por uma fera verdadeira é perfeitamente acidental. Mas eis o que é importante. Entre o lobo no meio do capim e o lobo no conto há um difuso mediador. Esse mediador, esse prisma, é a arte da literatura." Nestes termos, a Literatura inventa a Natureza, porque a conhece demasiado bem e a respeita nos seus maiores perigos. Ela inventa-a, e todo aquele que não experimentar o contacto com a Literatura ficará para sempre privado de desenvolver as suas faculdades de invenção e imaginação de que a própria criatividade científica tanto depende, para entender esse mesmo mundo natural.
A Literatura tem demasiada consciência não só da beleza da Natureza, mas também da sua crueldade, para ignorar a força das suas terríveis leis. É exactamente nos momentos, em que essas leis mais põem em perigo a sua existência, que ela deve mostrar o seu maior valor e utilidade. Deve estar atenta às deslumbrantes cores protectoras das borboletas e das aves, para não ignorar o sofisticado sistema de feitiços e astúcias da Natureza. Deve-se inspirar nos seus truques de ilusionismo, para não se tornar vítima dessa ilusão.
Não nos deixemos, pois, enganar pela Natureza e pelas suas inevitáveis leis de extinção. Deixemos que a Literatura nos sirva para as contrariar no que elas têm de mais radical e definitivo. Alcancemos, através dela, o poder de reagir contra a morte ou contra toda e qualquer forma de aniquilamento, garantindo não só a nossa simples sobrevivência, mas muito especialmente a defesa da imortalidade do espírito humano. E se, depois de tudo isto, alguém ainda duvidar da utilidade da Literatura, não nos responsabilizamos pelo seu provável regresso ao Neanderthal e à sã convivência com lobos, que este retorno às origens decerto lhe proporcionará.
Maria Antónia Lima, Departamento de Linguística e Literaturas da Universidade de Évora
2007-01-09 - Maria Antónia Lima