21 outubro 2006, às 21h30m
Café Princesa
Rua Silva Tapada, 124
Porto
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Borbotom –Teatro: o descontinuum, a alma, a lama
Decididamente, o teatro poético recupera a nossa debilidade ou o deficit antropológico. Por vezes, chega mesmo ao ponto de reservar surpresas inquietantes a quem já não as esperava. É o que se verifica, por exemplo, com o livro das Edições Incomunidade Borbotom de Alberto Augusto Miranda, onde nos familiarizamos com o extravagante, o singular, o exorbitante e tudo quanto se dissimula para além ou no seio da palavra irredutível: o apogeu do delírio e da paródia. Basta mencionar, em primeiro plano, as dezenas de personagens compulsivas, imprudentes, incontinentes, mesmo quando nem dão por isso, que se reportam à sua experiência singular, isolada e irreprodutível (alheios às regras do “correcto” ou da comunicação linguística comum e ordinária). Não devemos, porém, perder de vista esta “comunidade de mentes” e os seus “discursos” (a ordem do discurso) no entrelaçamento do que o filósofo Donald Davidson chama de esquema de triangulação: falante-intérprete-mundo. Pode-se perguntar se todos estes personagens falantes - emersos nas suas crenças, hipóteses e teorias que têm sobre o mundo - geralmente querem dizer o que eles dizem, pois, como se torna óbvio, a linguagem é necessariamente um assunto social. Quer dizer: nas suas asserções declarativas o personagem que fala jamais é capaz de dizer o que quis dizer. Podemos dizer, talvez, que as falas são intercambiáveis. E daqui se seguem muitas outras consequências importantes.
Há uma questão filosófica muito geral em Borbotom que pergunta, com base na carência ou deficiência de auto-controle dos seres humanos, se eles podem alguma vez ter boas razões para perfilharem intenções e juízos incondicionais sólidos? Será possível a coerência que gera correspondência, ou melhor, a interconexão racional (a implicatura conversacional) de que precisamos?
Parque humano
Não há já nada que possamos esperar do “parque humano” (como assinalou o filósofo alemão Peter Sloterdijk). Assim, pois, já por natureza o teatro reflecte ou tentar expressar o homem como ser de linguagem: o grotesco e o sublime. Que significa colocar em cena vozes – e incorporar o diálogo – que não é apenas confronto do eu-tú, mas também aquele interno “de mim para mim mesmo” - e o dialogismo? De personagens únicos e avassaladores em confronto - nos seus códigos entremeados – e que, por assim dizer, oscilam entre o dito, o entre-dito e inter-dito? Seres insólitos, neuróticos, divididos entre o corpo e o pensamento, entregues à palava viva, aos fantasmas, o luto por detrás da negação do luto?
A palavra transviada
Borbotom de Alberto Augusto Miranda acaba por se apresentar como a “experiência radical da linguagem”, para usar uma expressão de Raymond Roussel, independentemente dos sujeitos que ali falam: dezenas de personagens, homens e mulheres, celebrando a palavra transviada e as suas obsessões. Estas vozes-falas - algo tumultosas e despudoradas - são uma contínua fonte de inspiração. É verdade que, no centro destas vozes-falas, ou ambas as coisas, podemos ouvir o eco do pós-modernismo que fracturou a coerência dos discursos (tudo o que alude a uma significação permanente e inequívoca). Podemos falar de um teatro que carrega as marcas da “desconstrução”? Indesvendável? Um teatro de vozes e da verbalização? Na polifonia dos seus registros? Do mais concreto ao mais abstracto, do mais emocional ao mais intelectual? Um teatro da alma e da lama? Do distúrbio humano em que a morte perde significância? O suicídio?
A palavra inconciliável
Neste texto compulsivo/incisivo – situado na órbita do colapso pós-moderno das maneiras convencionais da dramaturgia - assiste-se à fragmentação da coesão e da continuidade tão queridas pela “arte elevada”.
Não há dúvida de que este teatro de projecções - que emerge dos interstícios da palavra condensando numa pequena “moldura” várias narrativas – tenta dizer tudo: o impossível. A bem dizer o que aqui prevalece é um sub-texto.
Assim, o que na complexidade, mostra o mundo dos egos separados, independentes e concorrentes, e o mundo da humanidade partilhada. Borbotom exibe a face visível da palavra dirigida, incontrolável, profanadora, des-sacralizadora, transfigurada, expressando no limite do possível, ou no extremo limite, uma experiência trágica do mundo e do homem: o descontinuum.
Aqui se esconjura a compulsão-obsessiva comunicada através da fala: dos estados mentais. Sabemos que tudo acontece na mente: ela tem o poder de moldar a realidade. Mas a mente pode ser o nosso pior inimigo.
A polifonia e a voz
Este texto teatral “rizomático” de Alberto Augusto Miranda – uma espécie de melting pot de coloquialismos, discursos minimalistas e sub-estilos filosóficos - permanece profanamente ambivalente e ambíguo até na sua forma abrupta de vozes-aparições – ignorando a consistência e evitando a centralidade em personagens (quase invisíveis) de conivência com os temas limite. Narrativas estilhaçadas vivenciando a intensidade da perda – não procurando reconstituir o que já foi, mas sim rejubilar-se em meios aos escombros dos sonhos. Mais precisamente ainda: os (pseudo) personagens de Borbotom afixam-se supostamente em cenas/situações –numa sequência em perpétua inter-acção - com suas vestimentas transitórias e descartáveis - celebrando, em última instância, a palavra inconciliável – et pour cause – a metáfora da metáfora. Hoje sabemos que a realidade pode não ser tão “real” quanto pensamos, já que construímos boa parte dela.
(In)comunicação
Nesta peça – onde os entre-ditos dos personagens são também (in)comunicação – manifesta-se o amplo espectro das possibilidades discursivas - e em que a palavra transgride os limites da razão. Estamos perante linguagens de des-integração. Vivemos todos sob a ameaça da repressão, da inadequação, da repetição, do mero cumprimento de ser. Confrontados com o devir e o inacabamento em todos nós perpassa a impossibilidade mesma do absolutismo de uma linguagem única e da chamada vida normal. A dificuldade consiste propriamente no tom (no sub-tom melancólico). O que passa pelo tom das diferentes vozes de homens e mulheres que se instalam nesse lugar onde faltam as palavras, e essa falta é também o que as atrai? Em verdade, algo permanece errado/obscuro em nós. Assim é, com efeito, a nossa situação: vivemos num estado de crise e a palavra pronunciada acaba por ser sempre unilateral. Apesar de tudo, subsiste indubitavelmente a questão das “verdades terminais”. Ora é precisamente isto que pode parecer estranho: estamos confrontadas com o deserto do real. Não vemos o mundo como ele é, mas sim como os nossos sentidos o captam: na mente.
Se pensarmos em tudo isto, reconheceremos imediatamente que em Borbotom de Alberto Augusto Miranda – mesclando falas/vozes numa espécie de teatro polifónico - prevalece, por conseguinte, o fenómeno da carnavalização da linguagem: a loucura como linguagem ou a linguagem como espaço próprio da loucura.
Des-encaixado
Acrescentemos que, em todo o caso, Borbotom poderá aparecer como um teatro de densidade, do insolúvel, do a-teológico, da soltura e da viscosa solenidade verbal. Mas a sucessão de episódios, falas e vozes dissonantes até ao final revela-nos a configuração de um teatro des-encaixado.
Compreendem-se, por este facto, as falas anómalas, fantasmagóricas, intermináveis, além da dicção e das cadências do discurso ordinário. Dir-se-á talvez, sem dúvida até, que se assume como registro ou testemunho da perda, do inexprimível e da auto-mutilação. Mas, por agora, o essencial é assinalar as falas de enfermidade, de anamorfoses, em claro-escuro, em fragmentarismo, de dissolução, em dupla-face. Seja as falas díspares que se exteriorizam e se interiorizam, do desespero mais geral e mais edificante.
“Theatrum Mundi”
Aqui se apresentam, porém, discursos em contraposição que expressam a um só tempo diferentes versões do mundo (“modos de fazer mundos”). É pois por ser teatro “quântico” – “vários mundos” e “vários níveis de realidade” - , e por este teatro apontar para o questionamento constante da “verdade” dos nossos pensamentos e de nós mesmos, em suma: é por ele ser também um teatro-écran repleto de personagens e discursos na direcção de uma linguagem louca, absolutamente determinante, que falamos do “Theatrum Mundi”. Ou melhor: a vida como teatro, “sinthoma”. “O mundo inteiro, dizia Shakespeare, é um palco”. Há, em verdade, desde o início, vozes e alucinações nesta peça: tremores do apocalipse e fatalidade. A marca característica deste teatro está no centro de um dispositivo constituído por sujeitos falantes e vozes ruidosas, caóticas e exasperadas que se lançam à dissolução do “sentido”.
Aqui se valoriza a palavra como um modo de representação do mundo e como mundo da representação. Será possível, no entanto, alargar o âmbito dos três modos do acto linguístico: o afirmativo, imperativo e o interrogativo? Em Borbotom re-invertem-se as “regras do jogo” dando voz e vez aos integrantes (personagens) que raramente parecem estar sintonizados. Posto isto, poderíamos, por último, falar de um teatro como traços de um “esboço” trágico e saturnino da vida (onde importa, apenas, ter sempre presente a palavra ou a morte, o retorno do recalcado).
Alexandre Teixeira Mendes
Há uma questão filosófica muito geral em Borbotom que pergunta, com base na carência ou deficiência de auto-controle dos seres humanos, se eles podem alguma vez ter boas razões para perfilharem intenções e juízos incondicionais sólidos? Será possível a coerência que gera correspondência, ou melhor, a interconexão racional (a implicatura conversacional) de que precisamos?
Parque humano
Não há já nada que possamos esperar do “parque humano” (como assinalou o filósofo alemão Peter Sloterdijk). Assim, pois, já por natureza o teatro reflecte ou tentar expressar o homem como ser de linguagem: o grotesco e o sublime. Que significa colocar em cena vozes – e incorporar o diálogo – que não é apenas confronto do eu-tú, mas também aquele interno “de mim para mim mesmo” - e o dialogismo? De personagens únicos e avassaladores em confronto - nos seus códigos entremeados – e que, por assim dizer, oscilam entre o dito, o entre-dito e inter-dito? Seres insólitos, neuróticos, divididos entre o corpo e o pensamento, entregues à palava viva, aos fantasmas, o luto por detrás da negação do luto?
A palavra transviada
Borbotom de Alberto Augusto Miranda acaba por se apresentar como a “experiência radical da linguagem”, para usar uma expressão de Raymond Roussel, independentemente dos sujeitos que ali falam: dezenas de personagens, homens e mulheres, celebrando a palavra transviada e as suas obsessões. Estas vozes-falas - algo tumultosas e despudoradas - são uma contínua fonte de inspiração. É verdade que, no centro destas vozes-falas, ou ambas as coisas, podemos ouvir o eco do pós-modernismo que fracturou a coerência dos discursos (tudo o que alude a uma significação permanente e inequívoca). Podemos falar de um teatro que carrega as marcas da “desconstrução”? Indesvendável? Um teatro de vozes e da verbalização? Na polifonia dos seus registros? Do mais concreto ao mais abstracto, do mais emocional ao mais intelectual? Um teatro da alma e da lama? Do distúrbio humano em que a morte perde significância? O suicídio?
A palavra inconciliável
Neste texto compulsivo/incisivo – situado na órbita do colapso pós-moderno das maneiras convencionais da dramaturgia - assiste-se à fragmentação da coesão e da continuidade tão queridas pela “arte elevada”.
Não há dúvida de que este teatro de projecções - que emerge dos interstícios da palavra condensando numa pequena “moldura” várias narrativas – tenta dizer tudo: o impossível. A bem dizer o que aqui prevalece é um sub-texto.
Assim, o que na complexidade, mostra o mundo dos egos separados, independentes e concorrentes, e o mundo da humanidade partilhada. Borbotom exibe a face visível da palavra dirigida, incontrolável, profanadora, des-sacralizadora, transfigurada, expressando no limite do possível, ou no extremo limite, uma experiência trágica do mundo e do homem: o descontinuum.
Aqui se esconjura a compulsão-obsessiva comunicada através da fala: dos estados mentais. Sabemos que tudo acontece na mente: ela tem o poder de moldar a realidade. Mas a mente pode ser o nosso pior inimigo.
A polifonia e a voz
Este texto teatral “rizomático” de Alberto Augusto Miranda – uma espécie de melting pot de coloquialismos, discursos minimalistas e sub-estilos filosóficos - permanece profanamente ambivalente e ambíguo até na sua forma abrupta de vozes-aparições – ignorando a consistência e evitando a centralidade em personagens (quase invisíveis) de conivência com os temas limite. Narrativas estilhaçadas vivenciando a intensidade da perda – não procurando reconstituir o que já foi, mas sim rejubilar-se em meios aos escombros dos sonhos. Mais precisamente ainda: os (pseudo) personagens de Borbotom afixam-se supostamente em cenas/situações –numa sequência em perpétua inter-acção - com suas vestimentas transitórias e descartáveis - celebrando, em última instância, a palavra inconciliável – et pour cause – a metáfora da metáfora. Hoje sabemos que a realidade pode não ser tão “real” quanto pensamos, já que construímos boa parte dela.
(In)comunicação
Nesta peça – onde os entre-ditos dos personagens são também (in)comunicação – manifesta-se o amplo espectro das possibilidades discursivas - e em que a palavra transgride os limites da razão. Estamos perante linguagens de des-integração. Vivemos todos sob a ameaça da repressão, da inadequação, da repetição, do mero cumprimento de ser. Confrontados com o devir e o inacabamento em todos nós perpassa a impossibilidade mesma do absolutismo de uma linguagem única e da chamada vida normal. A dificuldade consiste propriamente no tom (no sub-tom melancólico). O que passa pelo tom das diferentes vozes de homens e mulheres que se instalam nesse lugar onde faltam as palavras, e essa falta é também o que as atrai? Em verdade, algo permanece errado/obscuro em nós. Assim é, com efeito, a nossa situação: vivemos num estado de crise e a palavra pronunciada acaba por ser sempre unilateral. Apesar de tudo, subsiste indubitavelmente a questão das “verdades terminais”. Ora é precisamente isto que pode parecer estranho: estamos confrontadas com o deserto do real. Não vemos o mundo como ele é, mas sim como os nossos sentidos o captam: na mente.
Se pensarmos em tudo isto, reconheceremos imediatamente que em Borbotom de Alberto Augusto Miranda – mesclando falas/vozes numa espécie de teatro polifónico - prevalece, por conseguinte, o fenómeno da carnavalização da linguagem: a loucura como linguagem ou a linguagem como espaço próprio da loucura.
Des-encaixado
Acrescentemos que, em todo o caso, Borbotom poderá aparecer como um teatro de densidade, do insolúvel, do a-teológico, da soltura e da viscosa solenidade verbal. Mas a sucessão de episódios, falas e vozes dissonantes até ao final revela-nos a configuração de um teatro des-encaixado.
Compreendem-se, por este facto, as falas anómalas, fantasmagóricas, intermináveis, além da dicção e das cadências do discurso ordinário. Dir-se-á talvez, sem dúvida até, que se assume como registro ou testemunho da perda, do inexprimível e da auto-mutilação. Mas, por agora, o essencial é assinalar as falas de enfermidade, de anamorfoses, em claro-escuro, em fragmentarismo, de dissolução, em dupla-face. Seja as falas díspares que se exteriorizam e se interiorizam, do desespero mais geral e mais edificante.
“Theatrum Mundi”
Aqui se apresentam, porém, discursos em contraposição que expressam a um só tempo diferentes versões do mundo (“modos de fazer mundos”). É pois por ser teatro “quântico” – “vários mundos” e “vários níveis de realidade” - , e por este teatro apontar para o questionamento constante da “verdade” dos nossos pensamentos e de nós mesmos, em suma: é por ele ser também um teatro-écran repleto de personagens e discursos na direcção de uma linguagem louca, absolutamente determinante, que falamos do “Theatrum Mundi”. Ou melhor: a vida como teatro, “sinthoma”. “O mundo inteiro, dizia Shakespeare, é um palco”. Há, em verdade, desde o início, vozes e alucinações nesta peça: tremores do apocalipse e fatalidade. A marca característica deste teatro está no centro de um dispositivo constituído por sujeitos falantes e vozes ruidosas, caóticas e exasperadas que se lançam à dissolução do “sentido”.
Aqui se valoriza a palavra como um modo de representação do mundo e como mundo da representação. Será possível, no entanto, alargar o âmbito dos três modos do acto linguístico: o afirmativo, imperativo e o interrogativo? Em Borbotom re-invertem-se as “regras do jogo” dando voz e vez aos integrantes (personagens) que raramente parecem estar sintonizados. Posto isto, poderíamos, por último, falar de um teatro como traços de um “esboço” trágico e saturnino da vida (onde importa, apenas, ter sempre presente a palavra ou a morte, o retorno do recalcado).
Alexandre Teixeira Mendes