"Os portugueses comportam-se como povo que teve mãe, mas é órfão de pai (...) E esta explicação poderia ter desenvolvimento psicanalítico."
(António José Saraiva)
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Este é o ponto de partida da tese de doutoramento de Maria Belo, publicado agora em livro pela Edeline, com o título Filhos da Mãe. A apresentação foi efectuada ontem, 6 de Fevereiro, pelo dr.º Mário Soares na Fundação Mário Soares.
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Maria Belo, entre várias actividades profissionais, foi deputada no Parlamento Europeu e é psicanalista co-fundadora do Centro Português de Psicanálise.
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A sua tese versa sobre uma marca estrutural do povo português, um cunho característico do que é a portuguesidade em si mesma, com as suas vantagens e desvantagens, algo que se poderia designar como sendo da ordem da "ausência do pai", ausência esta, diria eu, que nos atravessa transversalmente desde o nascimento da Portugal, com D. Afonso Henriques, passando pela partida dos homens para os "Descobrimentos" e pela emigração clandestina durante a ditadura salazarista. É sobre a singularidade desta ausência, sob o ponto de vista psicanalítico entre outros, que fica consignada uma tese com um valor absolutamente original e indelével e uma referência importantíssima para quem reflecte sobre a estrutura da cultura portuguesa.
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"A minha reflexão levou-me à convicção de que a cultura portuguesa apresenta dois aspectos sintomáticos, contraditórios na aparência, mas quão irmãos na lógica do inconsciente. Por um lado a presença, no imaginário colectivo, no simbólico, na obra cultural, nas falas sociais e políticas, do passado que eu chamaria 'patriótico': a história do país e da comunidade nacional, a sua antiguidade, os homens e os seus feitos. Como se se tratasse de um objecto primitivo que fosse necessário imaginar e simbolizar sem descanso, a cada instante, a fim de que o país e cada um de nós seja real, não se perca, não se desfaça. Objecto patriótico que existiu, que se conta sem cessar, que está nos livros, de que ninguém parece duvidar.
Por outro lado, agarramo-nos tenazmente a esse objecto da primeira infância (em Portugal especialmente marcante) perdido para sempre, que cada português sabe que nunca reencontrará, que nunca voltará para nos libertar da sua obsessão, que nos impede de viver (...)" - mas que - "por vezes, retorna. Mas não o reconhecemos. É irreconhecível para o consciente. (...)
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Como se quem tivesse partido não fossem os homens, mas algo de essencial com eles, esse objecto primitivo feito em seguida objecto patriótico. Como se a percepção inicial do pai real, o pai da estrutura, fosse a de um objecto perdido com o qual não temos relação, desde sempre e definitivamente Outro. Como se essa percepção da perda desse 'intimo-estranho', das Unheimlich que caracteriza para os humanos o pai real, fosse duplicado pela ausência física e simbólica do pai. E não restasse senão um pai imaginário e todo poderoso."
(Maria Belo - Filhos da Mãe)