Apesar de no século XIX ter aumentado a interacção do artista com o público e ter gerado o modelo de artista tal qual descrito na Parte I deste texto, destacam-se outros dois modelos, entre outras variações, que coexistiram separados entre si e ladeando aquele supracitado, através do grau de interacção do público e reconhecimento financeiro. Assim, enquanto no extremo inferior da pirâmide, estava a grande maioria composta de artistas solitários, porém heróicos, que passavam pela vida sem ter desfrutado de um retorno económico merecido, no cume da pirâmide estavam os artistas concebidos como verdadeiros príncipes no que diz respeito ao retorno financeiro e a compreensão, interacção e participação de seu público (1), a exemplo de Richard Wagner ou Edouard Manet.
Um dos principais objectivos das sociedades artísticas criadas no início do século XIX, era a difusão da arte, através da criação de um fórum público para as artes plásticas. Organizavam exposições regularmente e tentavam atrair a classe média a marcarem presença e comprarem as obras de arte contemporânea (2). O perfil do público havia mudado entre os inícios de 1800 e a partir de 1850. A burguesia foi reeducando seus gostos pela arte e cultura e seu crescimento económico tornou-lhe uma massa com amplas possibilidades de consumo. Tendo ou não um apurado espírito crítico, os valores burgueses foram conquistados pela arte. Elementos mediadores ou divulgadores culturais como as revistas de arte, os historiadores e os críticos de arte, contribuíram para a modelagem desses novos valores, sobre a grande massa capitalista. Uma das formas de cada indivíduo demonstrar prosperidade e cultura, era frequentar os teatros, comprar um quadro à óleo ou assistir a um concerto. Esta movimentação dos mediadores era por vezes rejeitada pelos artistas, que consideravam mais importante ver e sentir a arte, do que lê-la nos manuais de história, julgando esta última uma forma, nos termos de hoje, de alienação.
Porém, no ramo artístico musical, numa primeira vista, a arte não necessitava de um prévio preparo do consumidor para usufruir de seus efeitos. A música por si só, chegava aos ouvidos do seu público e bastava-lhe isso, para tocá-lo e sensibilizá-lo. Sendo assim, os críticos musicais, apesar de existirem, tiveram muito menos influência sobre o público do que os críticos da arte pictórica. Numa panorâmica comparativa, enquanto que a maioria dos estudantes de artes plásticas das academias procediam de pais que exerciam profissões na indústria, na manufactura e no comércio, os pais dos alunos das academias de música eram médios funcionários, militares altos e profissionais liberais. Na Alemanha e na Itália o papel artístico central foi ocupado pela música e pela poesia; na França e na Inglaterra as artes plásticas ocuparam a posição de interesse.
A música e os músicos estavam muito mais presentes na vida quotidiana, eram muito mais acessíveis e omnipresentes ao seu público: nas escolas, nos corais, na igreja, no exército e em casa. Este público também era abrangente, não ficando restrito apenas às classes nobres e burguesas, mas também a operária. Além de cada cidade incentivar o ensino da música com a fundação de escolas, havia uma certa competição entre as cidades pela qualidade e quantidade de vida musical sustentada pela Corte. Além disso, a presença da burguesia era grande, desde princípios do século XIX quando se fundaram inúmeras sociedades burguesas musicais. Tais grémios aglomeravam artistas profissionais e aficcionados, realizavam concertos, disputavam músicos virtuosos e organizavam festivais. A música cada vez mais foi se libertando das imposições sociais, necessitando apenas da atenção do bom ouvinte. O foco das atenções era sobre os compositores e suas composições e não tanto sobre os intérpretes da obra, que geralmente se apresentavam num formato de concerto.
A relação entre compositor e público era mais intensa e mais distante do que a relação entre o artista plástico e os seus clientes. Enquanto que num retrato encomendado, o cliente teria um objecto de veneração sólido e duradouro, na música, o produto final era efémero no sentido de que só existia enquanto se executava. No quadro o olhar do público necessitava de um preparo erudito racionalizado, enquanto que na música bastava a atenta sensibilidade. Se o pintor era um indivíduo onde constelava a magia de um bruxo dos sentimentos, o mito sobre o compositor era maior ainda. Beethoven, Schubert, Schumann e, sobre tudo, Wagner foram heróis divinizados daquela nova arte do som, personagens do Olimpo inclusos entre seus contemporâneos.
Parece-nos aqui, estar nascendo a estrutura cultural do público dos nossos dias, quando a alta burguesia se apossa mais tarde da arte como objecto de negócios. O mercado cultural, a indústria das produções artísticas e dos suportes das suas realizações estariam por vir com intensidade, na entrada do século XX, herdeiro de um século atribuidor de um grande valor à actividade capitalista.
João Araújo é aluno do curso de
Mestrado em Criações Literárias Contemporâneas
Évora, Portugal
1) El hombre del siglo XIX. Versión española de: José Luís Gil Aristu. Madrid, pp. 335-344.
2) Em 1865, havia na Europa um total de 203 associações desse tipo; 54 das quais só nos Estados alemães. El hombre del siglo XIX. Versión española de: José Luís Gil Aristu. Madrid: Alianza Editorial, p. 348.
3) El hombre del siglo XIX. Versión española de: José Luís Gil Aristu. Madrid: Alianza Editorial, p. 359.