Hoje a abstracção já não é a do mapa, do espelho ou do conceito. A simulação já não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real. O território já não precede o mapa, nem lhe sobrevive. É agora o mapa que precede o território – precessão dos simulacros – é ele que engendra o território cujos fragmentos apodrecem lentamente sobre a extensão do mapa. É o real, e não o mapa, cujos vestígios subsistem aqui e ali, nos desertos que já não são os do Império, mas o nosso. O deserto do próprio real.
Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação
O capital é irresponsável, irreversível, inelutável como o valor. Por si só é capaz de oferecer um espectáculo fantástico da sua decomposição – só paira ainda sobre o deserto das estruturas clássicas do capital o fantasmas do valor, como o fantasma da religião paira sobre um mundo desde há muito dessacralizado, como o fantasma do saber paira sobre a universidade. Cabe-nos a nós voltarmos a ser os nómadas deste deserto, mas desligados da ilusão maquinal do valor. Viveremos neste mundo, que tem para nós toda a inquietante estranheza do deserto e do simulacro, com toda a veracidade dos fantasmas vivos, dos animais errantes e simuladores que o capital, que a morte do capital fez de nós – pois o deserto das cidades é igual ao deserto das areias, a selva dos signos é igual à das florestas, a vertigem dos simulacros é igual à da natureza – só subsiste a sedução vertiginosa de um sistema agonizante, onde o trabalho enterra o trabalho, onde o valor enterra o valor – deixando um espaço virgem, assombrado, sem trilhos, contínuo como o queria Bataille, onde só o vento levanta a areia, onde só o vento vela pela areia.
Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação
Se me recordo correctamente, o filme abre com o código verde caindo em várias linhas rectas, como uma chuva de símbolos.
Há aquele momento em que Trinity salta e a câmara roda, mostrando que ela fica no ar um momento a mais do que seria possível, suspensa como pelo poder que nos sonhos nos faz voar e é aí que a audiência sente que algo está profundamente errado com aquele mundo possível do filme, que as regras ali são semelhantes, mas se podem dobrar.
Corta para a imagem de um homem, jovem, dormindo com a cabeça sobre a secretária. Passa música suave e vemos que o computador faz uma pesquisa sobre Morpheus. Neo acorda e de novo uma mensagem, o absurdo, o surreal tecido leve sobre o peso e sono da realidade, onde os ambientes, escuros ou diurnos são sempre pesados.
Alguém bate à porta, Neo abre, fala, vai à estante, olha por momentos um livro que abre, retirando de lá algo.
Volta um pouco atrás. À capa do livro. Pausa. Simulacra and Simulation, em letras douradas sobre uma capa de couro verde.
É desse livro de Jean Baudrillard que vos cito. É este livro que vos convido a descobrir ( Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação, Relógio d’Água, 1991).
Recordo-me quando tinha 14 ou 15 anos e ia de comboio ou autocarro pelo Porto; sentia um estranhamento, como se o que via, o movimento, o tecido espesso que escorria pela janela do autocarro - prédios, carros, multidões a pé -fossem algo de surreal. Já alguma vez o sentiram? O peso e a estranheza dos comportamentos, o facto estranhíssimo de ver aquelas criaturas equilibrando-se em duas patas e andando, andando num equilíbrio frágil.
A frase “ Welcome to the desert of the real” dita em Matrix ( 1999) é então quase uma citação directa de Simulacros e Simulações de Jean Baudrillard ( “O deserto do próprio real”) que, por sua vez, enquanto expõe a sua tese, alude a um conto de Borges.
Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação
O capital é irresponsável, irreversível, inelutável como o valor. Por si só é capaz de oferecer um espectáculo fantástico da sua decomposição – só paira ainda sobre o deserto das estruturas clássicas do capital o fantasmas do valor, como o fantasma da religião paira sobre um mundo desde há muito dessacralizado, como o fantasma do saber paira sobre a universidade. Cabe-nos a nós voltarmos a ser os nómadas deste deserto, mas desligados da ilusão maquinal do valor. Viveremos neste mundo, que tem para nós toda a inquietante estranheza do deserto e do simulacro, com toda a veracidade dos fantasmas vivos, dos animais errantes e simuladores que o capital, que a morte do capital fez de nós – pois o deserto das cidades é igual ao deserto das areias, a selva dos signos é igual à das florestas, a vertigem dos simulacros é igual à da natureza – só subsiste a sedução vertiginosa de um sistema agonizante, onde o trabalho enterra o trabalho, onde o valor enterra o valor – deixando um espaço virgem, assombrado, sem trilhos, contínuo como o queria Bataille, onde só o vento levanta a areia, onde só o vento vela pela areia.
Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação
Se me recordo correctamente, o filme abre com o código verde caindo em várias linhas rectas, como uma chuva de símbolos.
Há aquele momento em que Trinity salta e a câmara roda, mostrando que ela fica no ar um momento a mais do que seria possível, suspensa como pelo poder que nos sonhos nos faz voar e é aí que a audiência sente que algo está profundamente errado com aquele mundo possível do filme, que as regras ali são semelhantes, mas se podem dobrar.
Corta para a imagem de um homem, jovem, dormindo com a cabeça sobre a secretária. Passa música suave e vemos que o computador faz uma pesquisa sobre Morpheus. Neo acorda e de novo uma mensagem, o absurdo, o surreal tecido leve sobre o peso e sono da realidade, onde os ambientes, escuros ou diurnos são sempre pesados.
Alguém bate à porta, Neo abre, fala, vai à estante, olha por momentos um livro que abre, retirando de lá algo.
Volta um pouco atrás. À capa do livro. Pausa. Simulacra and Simulation, em letras douradas sobre uma capa de couro verde.
É desse livro de Jean Baudrillard que vos cito. É este livro que vos convido a descobrir ( Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação, Relógio d’Água, 1991).
Recordo-me quando tinha 14 ou 15 anos e ia de comboio ou autocarro pelo Porto; sentia um estranhamento, como se o que via, o movimento, o tecido espesso que escorria pela janela do autocarro - prédios, carros, multidões a pé -fossem algo de surreal. Já alguma vez o sentiram? O peso e a estranheza dos comportamentos, o facto estranhíssimo de ver aquelas criaturas equilibrando-se em duas patas e andando, andando num equilíbrio frágil.
A frase “ Welcome to the desert of the real” dita em Matrix ( 1999) é então quase uma citação directa de Simulacros e Simulações de Jean Baudrillard ( “O deserto do próprio real”) que, por sua vez, enquanto expõe a sua tese, alude a um conto de Borges.
Borges utiliza nesse mesmo conto o símbolo do deserto, recorrente na literatura ocidental e explorado com profundidade ao longo da Idade Média; o seu tratamento em textos religiosos dessa época explora as importâncias que ao símbolo são dadas tanto no Antigo como no Novo Testamento.
As redes de intertextualidade atravessam os séculos. Os livros, canónicos e influentes em tempos e de formas diferentes, são pontos centrais na rede flutuante de discurso que tece a Cultura Ocidental.
De volta à citação inicial “ Welcome to the desert of the real”, e com estes dados, as questões surgem. Porquê o deserto. O que é o Real. Porquê o deserto do real...
A um nível superficial de análise, o do enredo, este monólogo de Morpheus entrega-nos uma mensagem simples: devido a um conflito com a Inteligência Artificial, com a Máquina, o real foi estilhaçado, tornado estéril, destruído... Para aprofundarmos a interpretação da leitura, basta ler o monólogo no argumento do filme que nos leva a uma palavra-chave: wasteland, termo central na cosmovisão do século vinte, de que The Waste Land de T.S. Eliot é talvez a expressão maior; e essa palavra-chave abre-nos o imaginário moderno e pós-moderno a um facto simples: o Real morreu.
E não há dúvida que desert é símbolo. Lê-se no Dicionário dos Símbolos de Chevallier e Gheerbrant:
As redes de intertextualidade atravessam os séculos. Os livros, canónicos e influentes em tempos e de formas diferentes, são pontos centrais na rede flutuante de discurso que tece a Cultura Ocidental.
De volta à citação inicial “ Welcome to the desert of the real”, e com estes dados, as questões surgem. Porquê o deserto. O que é o Real. Porquê o deserto do real...
A um nível superficial de análise, o do enredo, este monólogo de Morpheus entrega-nos uma mensagem simples: devido a um conflito com a Inteligência Artificial, com a Máquina, o real foi estilhaçado, tornado estéril, destruído... Para aprofundarmos a interpretação da leitura, basta ler o monólogo no argumento do filme que nos leva a uma palavra-chave: wasteland, termo central na cosmovisão do século vinte, de que The Waste Land de T.S. Eliot é talvez a expressão maior; e essa palavra-chave abre-nos o imaginário moderno e pós-moderno a um facto simples: o Real morreu.
E não há dúvida que desert é símbolo. Lê-se no Dicionário dos Símbolos de Chevallier e Gheerbrant:
O deserto comporta dois sentidos simbólicos essenciais: é a indiferenciação inicial, ou a extensão superficial estéril, sob a qual deve ser procurada a Realidade. (...)
A ambivalência do símbolo é claríssima, a partir da simples imagem da solidão: sem Deus, é a esterilidade; com Deus, é a fecundidade, mas devido a Deus. O deserto revela a supremacia da graça: na ordem espiritual nada existe sem ela; tudo existe por ela e só por ela.
( Chevalier; Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, Teorema, pp. 259- 260)
A Realidade, mencionada na citação, interpreto como um sinónimo de Verdade desvelada (alétheia)... "Realidade" é nos então apresentado como um sinónimo de Verdade descoberta, o deserto é espaço de silêncio, de solidão, de vazio, antítese da Cidade. E a Verdade para os crentes é sinónimo de Deus.
Mas é na expressão “ sem Deus” que o significado profundo de deserto se desvela: a ausência de Deus é um deserto eterno. Alguém o terá sabido tão bem como os filhos do meio do século XX, escritores como Camus e Vergílio Ferreira?
Mas abordamos apenas o “deserto”, e o real?
Convido-vos a aprofundarem a etimologia de “real” e compará-la com o equivalente em Grego clássico, ler através dessa arqueologia linguística os seus significados filosóficos e retirar as consequências; podem acabar com uma ferramente poderosa nas mãos.
E convido-vos a ler Jean Baudrillard. E que me dissessem se pensam , como eu, que estes são dos mais estranhos tempos, em que habitamos os dois lados do espelho, simultaneamente, e que vivemos sobre o signo de Caim.
Mas é na expressão “ sem Deus” que o significado profundo de deserto se desvela: a ausência de Deus é um deserto eterno. Alguém o terá sabido tão bem como os filhos do meio do século XX, escritores como Camus e Vergílio Ferreira?
Mas abordamos apenas o “deserto”, e o real?
Convido-vos a aprofundarem a etimologia de “real” e compará-la com o equivalente em Grego clássico, ler através dessa arqueologia linguística os seus significados filosóficos e retirar as consequências; podem acabar com uma ferramente poderosa nas mãos.
E convido-vos a ler Jean Baudrillard. E que me dissessem se pensam , como eu, que estes são dos mais estranhos tempos, em que habitamos os dois lados do espelho, simultaneamente, e que vivemos sobre o signo de Caim.