terça-feira, agosto 22, 2006

A boda mexicana

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México do século XIX e até finais do século XX. México essencialmente rural, mas também urbano. México onde 4 gerações de mulheres permitem ter presente os principais traços de cada uma no âmbito, também, daquela que pode ser a relação estabelecida com a sociedade do seu tempo: Maria, Loreto, Maria Dolores e Esperanza, esta última que nos surge simultaneamente como a narradora que recorda. Que recorda a partir do dia do seu casamento. Que recorda, percorrendo um fio de tempo pesadamente doloroso em particular para a sua mãe, Maria Dolores. Mas um fio de tempo que, da mesma forma reforça, em crescendo, a referência das mulheres (de três mulheres em particular) na sua vida. Pelo que a sociedade lhes permitiu ser, pelo que elas tiveram ou não coragem de ser, pelo que transmitiram e deixaram de herança às suas descendentes, dentro daquelas que foram as suas possibilidades... ou impossibilidades.

A boda mexicana de Sandra Sabanero (n. 1954, México) é um romance que nos mostra, pois, um tipo de sociedade fortemente patriarcal que, aprofundada ao nível do que isso implica de pior, nos faz sentir absolutamente incomodados (e aqui sublinho, falando principalmente por mim: absolutamente incomodada) naquilo que pode mostrar no que concerne ao nível das relações entre casais e no papel atribuído à Mulher, sobretudo, à mulher rural do século XIX e grande parte do século XX. A problemática da violência física e psicológica é muitíssimo bem destacada naquele que se pode caracterizar como um tratamento com emotividade contida, pela sobriedade e inteligência na transmissão das mensagens. E paralelamente a essa violência... e paralelamente, também, ao cenário da impotência e da resignação, a possibilidade da mudança. A esperança em como isso pode acontecer. A esperança personificada em Esperanza. O grito para o futuro. As saudades e o desejo ardente do que poderá ser.

Estamos, indiscutivelmente, perante uma obra emblemática. Uma obra da qual vale a pena deixar aqui uma pequena ideia, através da apresentação de dois excertos:

Excerto 1:

Fez-se um longo silêncio. Recostei-me na cama e continuei a observar as fotografias. Enquanto via aqueles retratos envelhecidos, pensava no que provocara o fracasso do casamento dos meus pais.
- Como foi a sua lua-de-mel, mãe?
Ao evocar essas recordações, a minha mãe corou e tentou fugir ao meu olhar, como se temesse que eu as adivinhasse. Levantou-se e começou a folhear um livro de orações. Uma gardénia seca escorregou de entre as suas páginas, enquanto uma ténue fragrância dos anos passados invadia o ambiente.


A pé, e carregando a volumosa bagagem de María Dolores, puseram-se a caminho da estação de caminho-de-ferro. Partiram rumo a Comanja no comboio das onze da noite, muito juntos, de mão dada e rindo como duas crianças. Ela começou por fazer-lhe perguntas de pouca relevância, só para evitar o silêncio, que a assustava, mas instantes depois ficaram calados. (...) Dentro de poucas horas chegariam ao seu destino. Interrogou-se sobre o que se passaria então e como deveria comportar-se. (...)
A mente do noivo ia ocupada com a mesma questão, pois toda a sua paixão e pensamentos se concentravam em María Dolores. Depois de tantos anos de espera, em que se conformara com carícias furtivas e inocentes, poderia, por fim, gozar, dia a dia, e a cada instante, aquele amor e aquela paixão enormes, que com dificuldade conseguia conter. Era capaz de qualquer proeza para desfrutar do amor.
Na primeira noite, Francisco teve de fazer um esforço para reprimir o riso, ao vê-la metida naquela camisa de noite de avozinha, que a cobria do pescoço à ponta dos pés. Graças à sua grande experiência com mulheres, percebeu que necessitaria de muita paciência para vencer a timidez de María Dolores que, a tremer como gelatina, se metera debaixo dos lençóis, deixando apenas a descoberto o rosto e as mãos. Francisco deitou-se a seu lado com suavidade. Aqueles olhos enormes e assustados provocaram-lhe uma enorme excitação. Com os dedos, desenhou o contorno dos seus carnudos lábios virginais, beijou-lhe ternamente os cabelos sedosos, as faces e a boca, deslizando devagar até ao pescoço. Agarrou-lhe nas mãos, frias e húmidas, e entrelaçou-as nas suas. Passados uns momentos, deslizou as mãos por debaixo do lençol e, através do tecido grosso da camisa de noite, sentiu aquele corpo de formas escassas e delicadas. Segredou-lhe ao ouvido frases ternas, que nunca pronunciara. Contudo, apesar da sabedoria das suas carícias, o corpo assustado e passivo de María Dolores não reagiu.
Aquela frieza cortou-lhe momentaneamente o desejo, mas, sem desanimar, abordou-a da mesma forma nas noites seguintes. Porém, o resultado foi sempre o mesmo. Ao quarto dia, incapaz de esperar mais, arrancou-lhe a camisa de noite à força e pôde, por fim, tocar na sua pele suave como a seda e branca como as nuvens. Pressionado pela paixão que o consumia, introduziu-se naquela estátua dura e fria como porcelana, possuiu-a com movimentos rápidos e selvagens, que a ele produziram insatisfação e a ela dor e vergonha.
María Dolores nunca imaginara que no casamento tivesse que acontecer uma coisa assim. Agora sabia que aquilo fazia parte dos seus deveres de mulher casada. (...)
A sua mente atormentava-se com imagens angustiantes e os seus pensamentos não davam trégua àquelas severas reflexões. A proximidade do esposo inspirava-lhe um desejo insuportável de se refugiar no seu peito, aspirar o seu cheiro a limão e suor, contemplar e acariciar todo aquele corpo firme que também lhe pertencia, mas, ao mesmo tempo, aquela necessidade fazia-a sentir uma vergonha imensa. Tais pensamentos iam contra os seus princípios morais que, no entanto, também não lhe indicavam que caminho seguir. Quando perguntou à bisavó como deveria comportar-se enquanto mulher casada, ela respondeu-lhe:
- Deves obedecer ao teu esposo e servi-lo. Nada de andar na conversa de casa em casa nem pelas ruas. E, acima de tudo, deves ser sempre uma mulher honesta, trabalhadora e recatada.
O que significava ser recatada e decente? Para a minha bisavó, os limites entre a decência e a indecência eram muito vagos.
- No mundo existem dois tipos de mulheres: as que vivem para o lar, obedecem ao marido, têm os filhos que Deus achar por bem mandar-lhes e tratam bem deles, e as "mulheres da rua", que se exibem descaradamente para provocar os maus instintos e fazer todo o tipo de porcarias com os homens só por dinheiro. São mulheres que não temem a Deus.
Nessa definição de mulher não estavam incluídas as palavras "desejo" e "prazer". Por isso, o facto de os sentir provocava-lhe uma vergonha e um sentimento de culpa avassaladores. (...)
Quando Francisco a possuiu pela segunda vez, María Dolores sentiu, por uns instantes, que a sua pele se eriçava, que os seus seios endureciam e que o sangue lhe corria nas veia com ardor, invadida por uma excitação desconhecida que a fez agonizar de prazer; mas, de imediato, sentiu asco, ao escutar a respiração ofegante de Francisco, semelhante à de um animal. "Isto é sujo! É um pecado!", pensou. Quis escapar, sair a correr do quarto, mas o corpo dele esmagava-a. O marido continuava a suspirar e a deslizar os lábios pelos seus seios diminutos. Com um movimento brusco da mão empurrou-lhe a cara. Ele ergueu o olhar e o que viu nos olhos da mulher penetrou como um relâmpago pela sua mente entorpecida, fazendo-o saltar da cama. Aproveitando aquele momento, María Dolores fugiu para a casa de banho. Encheu a bacia de água fria e mergulhou a cara, como se desejasse apagar as marcas daquele instante vergonhoso. Pouco depois regressou à cama, com o corpo escondido por uma bata e, sem pronunciar palavra, deitou-se, de rosto virado para a parede.

Excerto 2:

No dia seguinte, Francisco despertou de excelente humor e tomou banho assobiando Luna de octubre. Aspirou o odor a sumo de laranja e chilaquiles picantes. Sorridente, entrou na cozinha, saboreando de antemão o almoço, e quis beijá-la, mas ela esquivou-se.
- O que se passa agora? - perguntou, enquanto se sentava e começava a comer uma tortilha. Parecia não se lembrar do que ocorrera na noite anterior.
Em contrapartida, María Dolores, pálida e séria, deu rédea solta à dor e à frustração, que se transformaram em palavras críticas:
- Embebedas-te, chegas de madrugada, insultas-me, trazes manchas de batom na camisa, bates-me e ainda tens o cinismo de me perguntar o que se passa - disse com voz dorida e depois começou a chorar com desespero.
- O quê? Estou a ver que bebi de mais, não me lembro de nada. Tu és a rainha da minha vida, a minha esposa legítima. Como é que eu podia fazer-te uma coisa dessas? Vá, deixa de chorar e vem comer. Esquece isso, por favor - disse beijando-lhe o cabelo.
Ao princípio continuou receosa e repetiu as queixas, mas depois de mais algumas palavras meigas agarrou-se-lhe ao peito e a reconciliação não se fez esperar. Infelizmente, aquele tipo de situação passou a repetir-se com frequência, e com o passar do tempo, María Dolores acabou por se resignar a viver em silêncio o seu mundo secreto de dor e frustração.
Nos primeiros tempos tinha vergonha de admitir os seus problemas conjugais perante a família do marido, mas as marcas das pancadas no rosto denunciavam-nos. Acabou por lhes contar a verdade.
Ao escutar as queixas, o meu avô Francisco olhou-a com frieza.
- Ah! - exclamou, e em seguida acrescentou: - Se não está bem, volte para casa, que mulheres é coisa que não falta neste mundo.
Aquelas palavras desdenhosas, reforçadas pelo tom glacial em que foram ditas, fizeram-na estremecer e tomar a decisão de não voltar a queixar-se.
Desesperada, procurou a ajuda e os conselhos do pai, mas também não teve sucesso. O pai escutou-a com atenção e quando ela concluiu o relato encolheu os ombros e semicerrou os olhos.
- As coisas nem sempre são o que nós queremos - comentou. É assim a vontade de Deus. Quem podia adivinhar uma coisa dessas! Parecia um bom rapaz, mas sendo filho de Dom Francisco, o que se havia de esperar? Quem sai aos seus não degenera... Bem dizia a comadre Fina que essa gente não prestava. Mas nós, acreditando na boa-fé do teu marido, com o coração nas mãos, abrimos-lhe a porta de casa. Agora só te resta aguentar e fazer os possíveis por não o aborrecer. Molda-te a ele e obedece-lhe. Tenta conquistá-lo de algum modo! Lembra-te de que o casamento é uma cruz, e é nossa obrigação carregá-la - concluiu.

- Que terei feito para pagar tão caro? - perguntou-me a minha mãe.
Permaneci em silêncio. Não tinha resposta. Observei-a cuidadosamente e descobri-lhe no rosto as marcas de uma vida cheia de dor. A sua tez de porcelana de outros tempos assemelhavam-se agora a marfim envelhecido, os seus olhos tinham perdido o brilho e as suas mãos estavam cobertas por uma apertada rede de rugas. A sua cintura esbelta deformara-se com o passar dos anos e na sequência das inúmeras gravidezes e abortos. Não havia quase nenhuma parte do seu corpo por estragar. Apesar disso, ainda conservava um certo ar de elegância discreta, oculta pela máscara da velhice.
Tentei evitar que as suas recordações amargas me contagiassem, mas ao agarrar aquele lenço da minha mãe, onde estavam embrulhados o terço e o livro de orações da minha avó Loreto, foi impossível. Aquele lenço, testemunho mudo de uma longa existência de lágrimas, risos, dissabores e impulsos reprimidos, estava impregnado das nossas vidas e era de uma familiaridade sufocante, como o próprio odor do meu corpo. A nostalgia abateu-se sobre mim em torrentes, provocando-me uma tristeza indescritível, que não consegui deter.


(Sandra Sabanero- A boda mexicana. Edição: Difel, 2005)


Sublinho: estes excertos apenas dão uma pálida imagem do que está em jogo. Assim sendo, e depois de tudo o que referi e apresentei, uma obra que recomendo absolutamente.

Até muito breve!