Trago-vos, hoje, um livro muito especial para mim. Um livro que teve um grande impacto sobre o meu espírito. Um livro que me permitiu reflectir bastante. Um livro que me levou a (re)olhar para o mundo, não por aquilo que eu desconhecesse existir, mas atendendo à(s) forma(s) como a(s) realidade(s) poderia(m) ser entendida(s) e explicada(s). Falo-vos de Satanás, romance da autoria do colombiano Mario Mendoza (n. 1964, Bogotá), com edição da responsabilidade da Temas e Debates. Um livro que inaugura a colecção "Radiografias", cujo objectivo é divulgar obras que, através da ficção, apresentem os grandes problemas da sociedade contemporânea.
Tendo como cenário a cidade de Bogotá (capital da Colombia), Satanás debruça-se sobre a presença do Bem e do Mal na passagem dos dias, que nada mais é do que a sua concretização na passagem dos tempos e, directamente, na vida dos indivíduos. Nesta dupla vertente, o Mal impõe-se de forma brutal, engolindo tudo e todos, mesmo quando parece haver algum raio de esperança ou o acreditar que o melhor é possível. Uma existência/presença que envolve... que vai envolvendo até ao sufocar e carcomir dos seres humanos. Uma presença (que é "a" presença) que transtorna psiquicamente, que manipula, que vira do avesso, que desracionaliza na senda constante do enegrecimento individual e paralela/consequentemente colectivo.
Ao longo da estória, que se pode desdobrar em várias estórias confluentes para um final comum, temos um olhar sobre quatro personagens (principais): Maria, Andrés, padre Ernesto e Campo Elias.
Convém referir que Campo Elias (46 anos, na altura), um antigo colega de faculdade do autor (22/23 anos, tb na altura), foi o móbil para a elaboração desta obra. E quem foi? Um indivíduo que a 4 de Dezembro de 1986, assassinou 29 pessoas em vários pontos de Bogotá. O que aconteceu marcou profundamente Mendoza, sendo que durante vários anos amadureceu a ideia de construção de um romance, o qual, só viria a ser concluído já neste novo século.
Satanás foi galardoado com o Prémio Biblioteca Breve 2002.
Os excertos que se seguem procuram, pois, dar a ideia global do grande tema ou da grande preocupação subjacentes ao livro através, sobretudo, de reflexões desenvolvidas. Aqueles que editarei, amanhã, incidirão sobre situações concretas onde o tal Mal está presente quer através de vontades, quer através de práticas, ou seja, em contextos envolventes aos indivíduos ou já no seu interior, conduzindo-os irremediavelmente.
Reforçando o que já disse: o livro é extremamente forte, vertiginoso, hipersensorial. Violento. É devorável. Aconselho vivamente a sua leitura integral. Acreditem: absolutamente a não perder!
Tendo como cenário a cidade de Bogotá (capital da Colombia), Satanás debruça-se sobre a presença do Bem e do Mal na passagem dos dias, que nada mais é do que a sua concretização na passagem dos tempos e, directamente, na vida dos indivíduos. Nesta dupla vertente, o Mal impõe-se de forma brutal, engolindo tudo e todos, mesmo quando parece haver algum raio de esperança ou o acreditar que o melhor é possível. Uma existência/presença que envolve... que vai envolvendo até ao sufocar e carcomir dos seres humanos. Uma presença (que é "a" presença) que transtorna psiquicamente, que manipula, que vira do avesso, que desracionaliza na senda constante do enegrecimento individual e paralela/consequentemente colectivo.
Ao longo da estória, que se pode desdobrar em várias estórias confluentes para um final comum, temos um olhar sobre quatro personagens (principais): Maria, Andrés, padre Ernesto e Campo Elias.
Convém referir que Campo Elias (46 anos, na altura), um antigo colega de faculdade do autor (22/23 anos, tb na altura), foi o móbil para a elaboração desta obra. E quem foi? Um indivíduo que a 4 de Dezembro de 1986, assassinou 29 pessoas em vários pontos de Bogotá. O que aconteceu marcou profundamente Mendoza, sendo que durante vários anos amadureceu a ideia de construção de um romance, o qual, só viria a ser concluído já neste novo século.
Satanás foi galardoado com o Prémio Biblioteca Breve 2002.
Os excertos que se seguem procuram, pois, dar a ideia global do grande tema ou da grande preocupação subjacentes ao livro através, sobretudo, de reflexões desenvolvidas. Aqueles que editarei, amanhã, incidirão sobre situações concretas onde o tal Mal está presente quer através de vontades, quer através de práticas, ou seja, em contextos envolventes aos indivíduos ou já no seu interior, conduzindo-os irremediavelmente.
Reforçando o que já disse: o livro é extremamente forte, vertiginoso, hipersensorial. Violento. É devorável. Aconselho vivamente a sua leitura integral. Acreditem: absolutamente a não perder!
DIÁRIO DE UM FUTURO ASSASSINO
20 DE OUTUBRO: Esta manhã, a minha aluna particular de Inglês surpreendeu-me com um comentário engenhoso. É uma jovem de catorze anos. Estou a ensinar-lhe o idioma recorrendo ao romance de Robert Louis Stevenson, O Estranho Caso do Doutor Jekill e Mister Hyde. Com o livro nos joelhos disse-me:
- O senhor gosta muito deste livro.
- Sim - reconheci.
- Não mo deu para ler apenas para me ensinar inglês, não é verdade?
- Não entendo.
- Há mais qualquer coisa. - Sorri para comigo. Ela continuou: - A história de Jekill é a de qualquer homem.
- Achas?
- A sua, a minha, a de qualquer pessoa.
- Como?
- Somos anjos e demónios ao mesmo tempo. Não somos uma única pessoa, mas uma contradição, uma complexidade de forças que lutam dentro de nós.
- Talvez sim.
- Somos cobardes e heróis, santos e pecadores, bons e maus. Tudo depende dessa luta, não acha?
- Sim, se calhar - disse, espantado por ouvir uma opinião tão inteligente numa rapariga daquela idade.
- Eu acho. O bem e o mal não existem separados, cada um por seu lado, mas unidos, colados. E às vezes confundem-se.
CÍRCULOS INFERNAIS
Sentado no escritório à mesa de trabalho, o padre Ernesto folheia os recortes de imprensa que guarda numa pasta de estudante, arquivados durante anos numa sequência maldita e nefasta que cobre o último decénio. Trata-se de uma série de artigos, de pequenas notas de jornal ou de fotografias que lhe chamaram a atenção e que mostram a decomposição gradual do mundo. Com a mão direita levanta uma das folhas e detém-se na fotografia de um rapaz de uns dezassete anos que olha para a máquina com uma cara de miúdo assustado enquanto três polícias altos e corpulentos tentam algemá-lo. A legenda da fotografia diz: "Três revólveres, cinco caixas de munições, um lança-foguetes e sete obuses de morteiro foram encontrados na casa de César Padilha, um estudante do sexto ano do secundário. Face às perguntas dos investigadores, o jovem Padilha afirmou: "Só queria estar preparado para qualquer eventualidade."
(...)
O padre Ernesto passou mais algumas páginas e detém-se na fotografia de uma rapariga loura de dezoito ou dezanove anos que é levada com os pulsos algemados por uma patrulha da Polícia. O rosto da jovem está calmo, repousado, em paz. Ao lado da fotografia, a redacção do jornal explica: "A adolescente Carmen Romero manteve os pais amarrados e a pão e água durante catorze dias na cave da casa onde viviam os três. No último minuto, quando ouviu a chegada de vários agentes da Polícia, Carmen estrangulou os progenitores com as próprias mãos. Os cadáveres mostravam contusões, queimaduras e fracturas quer nas extremidades superiores quer nas inferiores, o que comprova que o casal foi brutalmente torturado pela sua própria filha no decurso das duas semanas de detenção. Ao ouvir um dos polícias, impressionado com a cena, comentar "isto é uma loucura", Carmen Romero rompeu o silêncio e afirmou: "Loucos eram eles, não eu. O meu pai começou a violar-me desde criança com a cumplicidade da minha mãe, que o permitiu sem dizer nada. Muitas vezes ele sujeitou-me à força de pancada e de pontapés e ela nunca me protegeu, nunca impediu as agressões. Eles sofreram duas semanas. Eu sofri por mais de dez anos."
Noutro recorte, em letras de imprensa, aparece a seguinte notícia: "A enfermeira Conchita Rubio foi detida no lar de terceira idade El Abuelo Feliz por ter envenenado mais de catorze idosos. Ao ser interrogada por este jornal, a enfermeira defendeu-se argumentando que o fizera por compaixão, comovida pela triste situação dos pacientes. "A maior parte deles passa o tempo a chorar, sentindo saudades dos filhos e dos netos. Achei que a morte era uma saída decente para eles", disse a senhora Rubio."
Na última folha o sacerdote reconhece a sua própria letra. É uma citação de Louis J. Halle copiada à mão com o pulso trémulo: "Prevejo a extensão de uma desordem contínua, com o seu cortejo de desumanidade e a sua tendência para uma bestialidade crescente. Prevejo a barbárie."
O padre Ernesto aproxima-se da biblioteca e tira dois livros de uma das estantes: El enigma de las brujas, de Frei Leopoldo Santos e Las huestes de Satán, de Ezequiel Bautista. Leva-os até à secretária e procura no primeiro os processos de feitiçaria correspondentes à zona de Carcassonne, Toulouse, entre 1330 e 1340. Se bem se recorda o sacerdote, várias das feiticeiras capturadas expõem ali nas suas declarações o triunfo certo de Satanás e o seu reinado definitivo sobre o planeta. Com efeito, no capítulo IV, Frei Leopoldo Santos transcreve páginas inteiras dos documentos originais. Examinando as linhas com uma atenção exagerada, o padre Ernesto encontra finalmente um dos parágrafos desejados:
Ana Maria de Georgel manifestou em seguida que, durante o longo decurso dos anos passados desde a sua possessão até ao seu encarceramento, nunca deixou de praticar o mal e de se entregar a práticas abomináveis, sem que o temor a Nosso Senhor a detivesse. Assim, cozia caldeirões, sobre um fogo maldito, ervas envenenadas, substâncias extraídas quer dos animais, quer de corpos humanos que, numa horrível profanação, ia arrancar ao repouso da terra santa dos cemitérios, para se servir deles nos seus feitiços; vadiava durante a noite em volta das forcas patibulares, quer fosse para tirar tiras das vestes dos enforcados, quer fosse para roubar a corda onde estavam pendurados, quer para se apoderar dos seus cabelos, unhas ou gordura.
Interrogada acerca do símbolo dos Apóstolos e acerca da crença que os fiéis devem à nossa Santa Religião, respondeu, como verdadeira filha de Satanás, que existia uma completa igualdade entre Deus e o Diabo, que o primeiro era rei do Céu e o segundo da Terra; que todas as almas que este acabava por seduzir estavam perdidas para o Altíssimo e que viviam eternamente na Terra, passando de um corpo para outro através dos séculos, danificando, maltratando, corrompendo e fazendo sofrer as outras almas atormentadas. Ao perguntarem onde ficava, nesse caso, o Inferno, a bruxa respondeu que a Terra e o Inferno eram uma e a mesma coisa, local de padecimento e de dor, recanto de desdita, paragem de infortúnio, recinto de desgraça e miséria.
O padre Ernesto sente as frases como navalhas, como vidros cortantes que lhe abrem o pensamento. As palavras da mulher ajustam-se na perfeição às sensações que o vêm invadindo há semanas e que o impedem de viver com tranquilidade e de desempenhar satisfatoriamente as suas funções de sacerdote. O triunfo do mal. Porque não? Não bastava uma caminhada pela cidade para nos darmos conta de que estamos a deambular entre círculos infernais? Não eram os rostos dos mendigos, dos loucos, dos solitários, dos prisioneiros, dos suicidas, dos assassinos, dos terroristas, dos esfomeados, testemunhos claros do reino das sombras? Recinto de desgraça e de miséria. Sim, era assim, sem dúvida.
(...)
Dirige-se para o centro da cidade com a cabeça a transbordar de ideias, pensativo, sem se aperceber das pessoas e dos carros que se misturam à sua volta numa desordem inexplicável. O triunfo do mal. Porque não? A destruição do planeta, o capitalismo selvagem, a xenofobia acelerada... Mesmo pensando nos próprios dignitários da Igreja que tentaram extirpar os sabat e os vínculos demoníacos de uma sociedade sufocada e em crise permanente, a hipótese de uma maldade crescente confirmava-se. Porque a Inquisição e o Santo Ofício o que foram, senão organizações criminosas e assassinas? Potros de tortura, ferragens, cordas, facas e máquinas abomináveis eram as provas irrefutáveis de uma Igreja doente e delirante que continuava a promover e acrueldade e a violência no interesse de uma moralidade inexistente. Uma Igreja cuja misoginia saltava à vista quando decretava que "por um homem, dez mil mulheres", referindo-se ao facto de, por cada varão que tiveram de sacrificar ou torturar, assassinariam ou maltratariam dez mil mulheres. Porquê? Porque elas representavam a luxúria e a concuspiscência, eram elas que procuravam o sexo e a satisfação do corpo a todo o custo. A velha história do punhado de celibatários que têm pânico do clítoris e sonham extirpá-lo e fazê-lo desaparecer. Não havia dois bandos opostos, os bons e os maus, mas um grupo apenas cerrando fileiras em redor do ódio, da sevícia e da monstruosidade. O triunfo total e pleno da maldade. Não era uma suposição tão absurda.
(Mário Mendoza- Satanás. Edição: Temas e Debates, 2005. Fotografias de William Ropp)
20 DE OUTUBRO: Esta manhã, a minha aluna particular de Inglês surpreendeu-me com um comentário engenhoso. É uma jovem de catorze anos. Estou a ensinar-lhe o idioma recorrendo ao romance de Robert Louis Stevenson, O Estranho Caso do Doutor Jekill e Mister Hyde. Com o livro nos joelhos disse-me:
- O senhor gosta muito deste livro.
- Sim - reconheci.
- Não mo deu para ler apenas para me ensinar inglês, não é verdade?
- Não entendo.
- Há mais qualquer coisa. - Sorri para comigo. Ela continuou: - A história de Jekill é a de qualquer homem.
- Achas?
- A sua, a minha, a de qualquer pessoa.
- Como?
- Somos anjos e demónios ao mesmo tempo. Não somos uma única pessoa, mas uma contradição, uma complexidade de forças que lutam dentro de nós.
- Talvez sim.
- Somos cobardes e heróis, santos e pecadores, bons e maus. Tudo depende dessa luta, não acha?
- Sim, se calhar - disse, espantado por ouvir uma opinião tão inteligente numa rapariga daquela idade.
- Eu acho. O bem e o mal não existem separados, cada um por seu lado, mas unidos, colados. E às vezes confundem-se.
CÍRCULOS INFERNAIS
Sentado no escritório à mesa de trabalho, o padre Ernesto folheia os recortes de imprensa que guarda numa pasta de estudante, arquivados durante anos numa sequência maldita e nefasta que cobre o último decénio. Trata-se de uma série de artigos, de pequenas notas de jornal ou de fotografias que lhe chamaram a atenção e que mostram a decomposição gradual do mundo. Com a mão direita levanta uma das folhas e detém-se na fotografia de um rapaz de uns dezassete anos que olha para a máquina com uma cara de miúdo assustado enquanto três polícias altos e corpulentos tentam algemá-lo. A legenda da fotografia diz: "Três revólveres, cinco caixas de munições, um lança-foguetes e sete obuses de morteiro foram encontrados na casa de César Padilha, um estudante do sexto ano do secundário. Face às perguntas dos investigadores, o jovem Padilha afirmou: "Só queria estar preparado para qualquer eventualidade."
(...)
O padre Ernesto passou mais algumas páginas e detém-se na fotografia de uma rapariga loura de dezoito ou dezanove anos que é levada com os pulsos algemados por uma patrulha da Polícia. O rosto da jovem está calmo, repousado, em paz. Ao lado da fotografia, a redacção do jornal explica: "A adolescente Carmen Romero manteve os pais amarrados e a pão e água durante catorze dias na cave da casa onde viviam os três. No último minuto, quando ouviu a chegada de vários agentes da Polícia, Carmen estrangulou os progenitores com as próprias mãos. Os cadáveres mostravam contusões, queimaduras e fracturas quer nas extremidades superiores quer nas inferiores, o que comprova que o casal foi brutalmente torturado pela sua própria filha no decurso das duas semanas de detenção. Ao ouvir um dos polícias, impressionado com a cena, comentar "isto é uma loucura", Carmen Romero rompeu o silêncio e afirmou: "Loucos eram eles, não eu. O meu pai começou a violar-me desde criança com a cumplicidade da minha mãe, que o permitiu sem dizer nada. Muitas vezes ele sujeitou-me à força de pancada e de pontapés e ela nunca me protegeu, nunca impediu as agressões. Eles sofreram duas semanas. Eu sofri por mais de dez anos."
Noutro recorte, em letras de imprensa, aparece a seguinte notícia: "A enfermeira Conchita Rubio foi detida no lar de terceira idade El Abuelo Feliz por ter envenenado mais de catorze idosos. Ao ser interrogada por este jornal, a enfermeira defendeu-se argumentando que o fizera por compaixão, comovida pela triste situação dos pacientes. "A maior parte deles passa o tempo a chorar, sentindo saudades dos filhos e dos netos. Achei que a morte era uma saída decente para eles", disse a senhora Rubio."
Na última folha o sacerdote reconhece a sua própria letra. É uma citação de Louis J. Halle copiada à mão com o pulso trémulo: "Prevejo a extensão de uma desordem contínua, com o seu cortejo de desumanidade e a sua tendência para uma bestialidade crescente. Prevejo a barbárie."
O padre Ernesto aproxima-se da biblioteca e tira dois livros de uma das estantes: El enigma de las brujas, de Frei Leopoldo Santos e Las huestes de Satán, de Ezequiel Bautista. Leva-os até à secretária e procura no primeiro os processos de feitiçaria correspondentes à zona de Carcassonne, Toulouse, entre 1330 e 1340. Se bem se recorda o sacerdote, várias das feiticeiras capturadas expõem ali nas suas declarações o triunfo certo de Satanás e o seu reinado definitivo sobre o planeta. Com efeito, no capítulo IV, Frei Leopoldo Santos transcreve páginas inteiras dos documentos originais. Examinando as linhas com uma atenção exagerada, o padre Ernesto encontra finalmente um dos parágrafos desejados:
Ana Maria de Georgel manifestou em seguida que, durante o longo decurso dos anos passados desde a sua possessão até ao seu encarceramento, nunca deixou de praticar o mal e de se entregar a práticas abomináveis, sem que o temor a Nosso Senhor a detivesse. Assim, cozia caldeirões, sobre um fogo maldito, ervas envenenadas, substâncias extraídas quer dos animais, quer de corpos humanos que, numa horrível profanação, ia arrancar ao repouso da terra santa dos cemitérios, para se servir deles nos seus feitiços; vadiava durante a noite em volta das forcas patibulares, quer fosse para tirar tiras das vestes dos enforcados, quer fosse para roubar a corda onde estavam pendurados, quer para se apoderar dos seus cabelos, unhas ou gordura.
Interrogada acerca do símbolo dos Apóstolos e acerca da crença que os fiéis devem à nossa Santa Religião, respondeu, como verdadeira filha de Satanás, que existia uma completa igualdade entre Deus e o Diabo, que o primeiro era rei do Céu e o segundo da Terra; que todas as almas que este acabava por seduzir estavam perdidas para o Altíssimo e que viviam eternamente na Terra, passando de um corpo para outro através dos séculos, danificando, maltratando, corrompendo e fazendo sofrer as outras almas atormentadas. Ao perguntarem onde ficava, nesse caso, o Inferno, a bruxa respondeu que a Terra e o Inferno eram uma e a mesma coisa, local de padecimento e de dor, recanto de desdita, paragem de infortúnio, recinto de desgraça e miséria.
O padre Ernesto sente as frases como navalhas, como vidros cortantes que lhe abrem o pensamento. As palavras da mulher ajustam-se na perfeição às sensações que o vêm invadindo há semanas e que o impedem de viver com tranquilidade e de desempenhar satisfatoriamente as suas funções de sacerdote. O triunfo do mal. Porque não? Não bastava uma caminhada pela cidade para nos darmos conta de que estamos a deambular entre círculos infernais? Não eram os rostos dos mendigos, dos loucos, dos solitários, dos prisioneiros, dos suicidas, dos assassinos, dos terroristas, dos esfomeados, testemunhos claros do reino das sombras? Recinto de desgraça e de miséria. Sim, era assim, sem dúvida.
(...)
Dirige-se para o centro da cidade com a cabeça a transbordar de ideias, pensativo, sem se aperceber das pessoas e dos carros que se misturam à sua volta numa desordem inexplicável. O triunfo do mal. Porque não? A destruição do planeta, o capitalismo selvagem, a xenofobia acelerada... Mesmo pensando nos próprios dignitários da Igreja que tentaram extirpar os sabat e os vínculos demoníacos de uma sociedade sufocada e em crise permanente, a hipótese de uma maldade crescente confirmava-se. Porque a Inquisição e o Santo Ofício o que foram, senão organizações criminosas e assassinas? Potros de tortura, ferragens, cordas, facas e máquinas abomináveis eram as provas irrefutáveis de uma Igreja doente e delirante que continuava a promover e acrueldade e a violência no interesse de uma moralidade inexistente. Uma Igreja cuja misoginia saltava à vista quando decretava que "por um homem, dez mil mulheres", referindo-se ao facto de, por cada varão que tiveram de sacrificar ou torturar, assassinariam ou maltratariam dez mil mulheres. Porquê? Porque elas representavam a luxúria e a concuspiscência, eram elas que procuravam o sexo e a satisfação do corpo a todo o custo. A velha história do punhado de celibatários que têm pânico do clítoris e sonham extirpá-lo e fazê-lo desaparecer. Não havia dois bandos opostos, os bons e os maus, mas um grupo apenas cerrando fileiras em redor do ódio, da sevícia e da monstruosidade. O triunfo total e pleno da maldade. Não era uma suposição tão absurda.
(Mário Mendoza- Satanás. Edição: Temas e Debates, 2005. Fotografias de William Ropp)