sexta-feira, setembro 08, 2006

O Multiculturalismo e a tolerância intolerante

(imagem retirada de http://www.flickr.com/photos/saintclow/)



O encontro de culturas enquanto fenómeno não concernirá apenas à nossa temporalidade quotidiana, mas é algo que se pode observar ao retroceder pelos séculos. A Europa, por exemplo, foi sempre um lugar de encontro entre várias culturas, um lugar de choques e de entrecruzamentos culturais.

Ao observarmos esses choques culturais, o que melhor se poderá perceber é um núcleo de intolerância entre as várias culturas, um núcleo que se revela sempre que existe um marcar de posição, ou melhor, que esse marcar de posição se torna necessário para garantir seja a sobrevivência, a afirmação ou a expansão de uma substância cultural. Podemos inferir tal núcleo de intolerância cultural através de vários exemplos, desde as Cruzadas até ao extermínio dos judeus na 2ª Guerra Mundial. O filme Crash (Colisão) é um fiel retrato de como a tolerância apenas serve para escamotear a intolerância.

Se parece óbvio que o terrorismo é uma forma de intolerância cultural, podemo-nos interrogar sobre algo não tão óbvio, mas que de extrema importância – não serão as políticas multiculturais e as ideologias de tolerância multicultural ocidental, paradoxalmente, uma forma de intolerância cultural?

Se partirmos do pressuposto que comportamento gera comportamento, que reacção gera reacção, parece plausível supormos que o terrorismo, por um lado, e as políticas de tolerância multicultural, por outro, sejam os dois lados da mesma moeda da intolerância, o marcar de posições culturais que desencadeiam respostas e reacções recíprocas de intolerância. É o que tentarei demonstrar.

Desde as Cruzadas não se pode dizer que tenham existido alterações profundas na cultura e nas sociedades islâmicas como sucederam ,o ocidente, que, por sua vez, já atravessou duras transformações do seu núcleo cultural, desde a morte de Deus, passando pelos direitos do Homem, pelo Capitalismo, pelos avanços tecno-científicos, até à globalização.


O multiculturalismo ou o plurismo cultural (conceito que se refere à existência de várias culturas num determinado local com iguais direitos e sem qualquer descriminação das minorias), sem esquecer os diferentes contextos especificos de cada país como Brasil, os EUA, a Espanha, a França, a Holanda, a Inglaterra, Portugal, etc., surge, cada vez mais, como um movimento à escala planetária, um movimento inerente ao surgimento de uma Aldeia Global, que não é mais do que uma consequência decorrente dos inevitáveis processos da globalização, dos processos desencadeados pelas novas tecnologias, que impõem um incontornável entrecruzamento, de forma massificada, entre as várias culturas. Este entrecruzamento não concerne apenas ao fluxo global de informações, mas também de pessoas e de capitais.

Torna-se então necessário reflectir sobre o multiculturalismo, não apenas do ponto de vista das especificidades regionais mas enquanto um fenómeno global, e até que ponto a ideologia do multiculturalismo não é o definir de uma posição cultural que em nada é universal (o universal jamais poderá ser redutível ao global), mas que concerne apenas ao movimento actual da essência cultural ocidental. Penso que esse ponto será importante, até porque, nesse definir de posicionamento acaba por estar em jogo o questionamento inexistente (questionamento submetido à não-existência pela máquina capitalista, mas que "insiste" sintomaticamente como o ponto cego dos actos capitalistas) da cultura ocidental sobre a sua própria essencia enquanto cultura apanhada nas malhas da globalização que engendrou (Zygmunt Bauman chega mesmo a afirmar que a Europa está insegura do seu lugar no mundo globalizado), e que se expressa sobre uma discursiva máscara de tolerância estruturadora de toda uma «transgressão denegada» - a real intolerância cultural - que é a sua contrapartida, o seu núcleo oculto de verdade.

Penso existirem poucas dúvidas que a globalização implica um entrecruzamento cultural, um entrecruzamento entre o regional e o global, marcado pela hegemonia e expansão do capital e do mercado, o que nos permite colocar no trilho aberto pela premissa de Slavoj Zizek, de que “a tolerância multicultural é a ideologia hegemónica do capitalismo global”.

O multiculturalismo ideológico ultrapassa os objectivos de construção de uma coexistência pacífica entre várias culturas que têm de forçosamente entrar em contacto umas com as outras no contexto da globalização, isto porque, enquanto ideologia, ela submete todas as "causas" (humanitárias, sexuais, políticas, etc), toda a procura de novas respostas para os problemas com o que a actualidade da globalização nos impõe, a uma instrumentalização que legitime a lógica de mercado e a exploração capitalista. Veja-se o slogan da multinacional Benetton - "todos diferentes, todos iguais", para o capitalista pouco importa, acrescente-se.

Quando Zizek afirma que a tolerância multicultural é a ideologia hegemónica do capitalismo global, ele está também a afirmar que a pertença étnica e a identidade comunitária são "reterritorializadas" à força e sujeitas a um único laço social – o laço do Capital, no qual a tolerância multicultural é fundamental.

Ao contrário do que se possa pensar, o multiculturalismo não é a criação de uma política que permita às populações a manutenção de um tradicionalismo cultural, incentivando-as à tolerância da diferença inter-cultural. Inclusivé, as políticas de tolerância multicultural parecem, mais do que qualquer outra coisa, fazer passar a mensagem de que não é necessário cada um sair da sua posição assumida de superioridade cultural, basta cultivar-se uma certa "indiferença" cultural que permita um espaço para a tolerância. Em relação ao multiculturalismo, Zizek vai mesmo ao ponto de considerar que “o multiculturalismo é uma forma de racismo denegada, invertida, auto-referencial, «um racismo com distância»”.

Pragmaticamente, o multiculturalismo procede através do que Deleuze designou de “desterritorialização capitalista”, uma desterritorialização inerente ao fluxos globais, para instituir uma reterritorialização: neste caso a hibridez cultural. O que fica em causa é o próprio individuo naquilo que é o seu cerne: a sua identidade. Os efeitos desterritorializantes e desinstitucionalizantes da globalização capitalista, ao libertar o sujeito da submissão culturalmente codificada à sua comunidade ou instituição social tradicionais para o reterritorializar ao laço do Capital, conduzem a que a construção das identidades fique des-substancializada da "coisa cultural" e sujeita aos imperativos de uma "esteticização da subjectividade" originadora dos "agenciamentos de subjectidade", de que falava Guattari, "privatizações subjectivas" que implicam que o sujeito deixe de ter pontos fixos de identificação, como é no caso de uma cultura tradicional, sendo obrigado a frágeis identificações híbridas ao que Lacan designou enxames de significantes-mestres (S1).

Desta forma, poderemos ponderar os posicionamentos fundamentalistas e isolaccionistas (como é o caso de determinados grupos islâmicos) como uma barreira, a contrapartida da globalização não universal, o posicionamento de resistência contra a fragmentação cultural e a reterritorialização capitalista híbrida (de certa forma isso está implícito, a meu ver, na afirmação de que os propósitos dos terroristas são o atacar do "nosso" estilo de vida, dos valores que regem a nossa sociedade).

O choque de civilizações descrito por Zygmunt Bauman, que não pode ser desvinculado do que Freud articulou no "Mal-Estar na Civilização", a intrínseca "pulsão de morte" que move a intolerância intersubjectiva real (de que outra forma explicar o mandamento cristão "ama o teu próximo como a ti mesmo"?) enquanto a paródia moderna e «transgressão denegada» das políticas de tolerância, como se observa com a escalada de violência (a diferentes níveis) étnica, a xenofobia e o racismo por toda a Europa e pelo Mundo, não passa hoje, principalmente, pelo choque de afirmação, inerente ao movimento da globalização, de duas identidades culturais com mecanismos completamente diferentes – um fundamentalista, o outro (pseudo)multiculturalista?

A tolerância multicultural em si mesmo configura-se como uma Nova Ordem Global, como uma barreira fantasmática, um véu dissimulador e como a verdade não dita do facto de o sujeito se encontrar em vias de uma desterritorialização cultural e de uma reterritorialização capitalista e democrática, reterritorialização que se pretende global, desde o Afeganistão até Cuba, através da homogeneização das diferentes culturas ao Capital. É desta forma que a tolerância multicultural surge como a instrumentalização ideológica de um fantasma que oculte esse real, o real de que não existe (interesse em) uma verdadeira politização das "causas" e respostas, de uma verdadeira mobilização construtiva, nomeadamente, de novos valores éticos-culturais, face às consequências e desafios de uma globalização que não poderemos continuar a denegar.


É fácil constatar, no nosso quotidiano, o real oculto na instrumentalização fantasmatica da tolerância multicultural. Respeitamos o Outro e toleramos o Outro enquanto ele não revela as suas verdades, o real pulsional da sua essência. Toleramos as sabedorias místicas de Outras culturas, toleramos as suas “verdades turísticas”. Agora quando somos confrontados com verdades como a clitoridectomia, com determinadas torturas tribais, com a pena de morte, o canibalismo, os rituais macabros, com determinadas práticas sexuais tribais com menores (recorri propositadamente a estes exemplos extremos pelo choque que provocam), ou seja, com a própria forma de como o Outro regula o real do seu “gozo” (nos termos de Lacan) cultural, com o Real da Diferença desse gozo, aí a tolerância multicultural detém-se e a imposição dos valores ocidentais promove-se através dos valores democráticos, como os da liberdade e da igualdade.

Uma questão não formulada, entre muitas outras, desta imposição de valores é – em nome do que ou de quem se faz esta imposição? Talvez esta resposta permita desvelar um pouco da conexão entre o terrorismo, como expressão de um certo fundamentalismo islâmico, e o multiculturalismo.

Os valores democráticos como são os da igualdade e da liberdade são fruto de todo um trajecto do mundo ocidental e são significantes que são subjectivados, pelas diferentes gerações, de acordo com esse trajecto histórico. Não existe A Liberdade e A Igualdade, mas igualdades e liberdades. O que também quer dizer que elas não são totais mas parciais, são não-todas, na linguagem lacaniana. Temos uma liberdade parcial e uma igualdade parcial. Os ricos e os pobres não têm a mesma igualdade nem a mesma liberdade perante a justiça, a saúde, a educação, a não ser enquanto uma mediática demagogia discursiva. Para quem se lembrar, casos peculiares não faltam.

Por outro lado, não existe nenhuma garantia de que os valores democráticos sejam os únicos, sejam os que melhor garantam a convivência entre os sujeitos e as culturas. Será o caminho da democracia o único a percorrer, ou essa foi a “solução de compromisso” que o Ocidente construiu para si próprio?

Penso que temos de reflectir e entender que a imposição de valores ocidentais e democráticos noutras culturas poderá desrespeitar e ir contra o seu próprio trajecto histórico. Nada saberemos sobre como países como o Iraque subjectivarão os valores democráticos impostos pelos norte-americanos (que têm também o seu modo singular de subjectivar os valores democráticos). Por outro lado, até que ponto essa imposição não corresponderá ao invalidar da construção de um projecto colectivo de uma verdadeira (e dolorosa) transformação social?

Falta ainda responder à pergunta formulada, sobre os objectivos ocultos da globalização dos valores ocidentais.Essa globalização é também parcial, não é de forma nenhuma casual, nem imparcial e muito menos altruísta.

Peguemos, por exemplo, nas políticas humanitárias e no subsequente habitual intervencionismo militar. Quais os parâmetros que decidem uma intervenção humanitária? Serão imparciais? Como comparar neste campo o que sucedeu em Timor, os massacres na Turquia nos anos 90, o que sucede à vários anos no Sudão e até mesmo o que sucedeu no Líbano, com outras intervenções que são espontâneas e até mesmo unilaterais, como foi o caso do Iraque?

É lógico que a globalização dos valores ocidentais promove-se de acordo com objectivos económico-políticos específicos. Os trabalhos de Noam Chomsky de desmascaramento destes objectivos ocultos são muito ilustrativos e deixam poucas margens de dúvida. A máquina capitalista (política, militar, etc.,) não invalida o projecto de construção social (a menos que se considere que existe qualquer coisa desse tipo no Iraque e no Ageganistão) por ingenuidade. Os objectivos económico-políticos do ocidente estão implicitos nisso mesmo.

Pequemos no caso do Iraque para demonstrar a intolerância da tolerância multicultural ideológica subjacente à expansão da civilização ocidental capitalista.O Iraque foi invadido com a justificação de que existiriam armas químicas. Estas nunca apareceram. Parece-me óbvio que foi uma cabala descarada (que dizer das prisões secretas da CIA. Primeiro nunca existiram. Agora que as provas são inegáveis Bush teve que admitir a sua existência. E amanhã...? O discurso de Bush parece-se, em certa medida, com uma anedota que Freud utilizou para demonstrar os mecanismos do inconsciente: um homem ao receber do seu colega um caldeirão que lhe tinha emprestado constatou que este estava danificado, ao que o outro prontamente lhe respondeu - "primeiro, eu o devolvi em perfeitas condições; segundo, o caldeirão já estava danificado; terceiro, tu nunca mo emprestás-te)

Eu pergunto-me: como se poderá negociar “pela palavra”, como se poderá chegar pela fala a um entendimento multicultural global, se todo o discurso ocidental é um discurso mentiroso, repleto de tramas e enredos ocultos e com o propósito único de dominação capitalista?

Será que não se compreende que com o altruísmo e a mascarada (in)tolerância ocidental, o terrorismo surge como um resposta (até que ponto não é equitamente proporcional às tácticas ocidentais) de evitar a mentira pseudo-consensual da palavra culturalmente democrática, através da violência do real?

Talvez seja tempo de retirarmos as ilacções que temos a tirar do nosso próprio posicionamento ocidental, de um posicionamento que está à deriva e à mercê dos interesses da lógica de mercado. Talvez seja tempo de concluirmos a inconsistência da palavra por que se pauta o discurso verborreico ocidental, da "palavra sem palavra de quem não tem palavra", de recuperarmos a palavra e de ultrapassarmos os nossos sintomas de quem vive numa era "pós-política" regida por "tecnocratas esclarecidos".

Igor