Vim para falar com o Senhor Biva. Uma conversa séria. Controversa. Recebe-me mal-humorado. Levo os meus apontamentos sobre poesia, escrita, leituras, etc.
- Senhor Biva, que poetas lê actualmente?
- Todos os maus poetas.
- Como assim?
- É uma questão de aperfeiçoamento. Só um mau poema me dá inspiração para um bom poema.
- Quer dizer que o Senhor Biva escreve com base na mediocridade dos outros autores?
- Um mau poema tem sempre um verso extraordinário. Eu apenas salvo a ideia e transformo-a num poema meu, renovado.
- Mas isso não é considerado plágio?
- Se fizer mau tempo, visto uma gabardina. Se for na rua e chover, abro o guarda-chuva.
- Esses exemplos são para explicar o quê, Senhor Biva?
- São para explicar o plágio e os maus poemas.
- Não tem uma ideia do poema quando escreve?
- De forma alguma. Apenas sinto uma poética do acto quando o poema está a ser escrito.
- E não vai dar ao mesmo?
- É provável, mas com resultados diferentes. Aqueles que escrevem com uma ideia de poema acabam por esquecer a poesia. Voltamos à mesma questão: quem leva o poema já construído para o acto de o escrever, não sente a poesia como coisa viva.
- Escreve-se agora muito sobre teoria da poesia. Quer comentar?
- A teoria está para a poesia como as doenças venéreas estão para o sexo.
- Recordo que o Senhor também teoriza sobre esse tema.
- A teoria dos meus actos só viaja à volta de mim.
- Mas tem uma opinião sobre o assunto?
- Os teóricos que se ocupam sobre a poesia dos outros são caricaturas poéticas.
- Mas são necessários.
- A necessidade neste contexto é a moral do ridículo.
- E os críticos literários?
- A má literatura deve-lhes muito.
- Senhor Biva, quando foi que se descobriu escritor?
- Quando li pela primeira vez o Noddy.
- As suas leituras começaram por aí?
- Essencialmente, sim. Por aí e pelos recortes de jornais que a minha mãe punha na mesa, ao lado do prato para colocarmos as espinhas do peixe e os ossinhos do frango.
- Nunca leu os clássicos?
- O Charles Dickens, sim. E o Júlio Verne. Esses dois passaram lá pela barraca.
- E os filósofos, Senhor Biva?
- Não era assim tão vaidoso.
- A cultura tem a ver com a vaidade?
- Quando se confessa que se leu o Deleuse e o Goethe aos dez anos…
- Mas com essa idade já escrevia.
- Escrevia poemas sobre as pessoas intragáveis.
- Nunca escreveu sobre a natureza; a candura dos amores?
- Sobre o amor, sim. De uma forma negativa.
- Mas era ainda uma criança para abordar o tema por essa perspectiva.
- Tinha a experiência do observador.
- Senhor Biva, e os portugueses? Lia-os?
- Só mesmo o Vergílio Ferreira.
- Como o descobriu?
- Roubei o livro numa barraquinha de livros usados.
- Leu-o?
- Não era para a minha idade. Fiquei desiludido. Roubei-o sem primeiro ver do que se tratava. Na rua, quando li o título “ Cântico Final” percebi logo que se tratava de uma pequena bíblia. Guardei-o para ler no futuro.
- E hoje lê romances escritos por autores portugueses?
- Não leio literatura portuguesa.
- Alguma razão?
- Não especialmente. É apenas por uma questão de estilo cultural.
- Aborrece-o?
- Como pode aborrecer-me uma coisa que não conheço? Às vezes leio umas críticas, algumas entrevistas; oiço-os por aí.
- E que conclusão tira desses contactos?
- A conclusão é que tentam desesperadamente aperfeiçoar os seus livros através das explicações e análises que fazem sobre eles.
- Nunca lhe passou pela cabeça expor-se desse modo? Quero dizer: nunca pensou discutir publicamente uma obra sua?
- A perfeição é uma arte. Não me apetece nada mostrar as minhas tripas.
- Mas há pouco confirmou que teorizava sobre os processos da escrita.
- O que eu faço são autópsias para uso interno.
- Também autopsia poemas medíocres, como fez crer no início da nossa conversa.
- Claro. A poesia é um lugar adormecido; uma necrópole onde os poemas são depositados sem vida.
Publicado por Fernando Esteves Pinto