sábado, dezembro 10, 2005

Biografia sem Dentes

Por José Luís Peixoto
Este é o texto em que descrevo alguns momentos importantes da minha vida tal como teriam sido se me tivessem caído todos os dentes.
1. Primeira palavra
A minha mãe andava já há muito tempo a repetir-me sílabas. Na maior parte das vezes, eu continuava indiferente, a gatinhar pelo chão da cozinha, mas, em certos momentos, parava-me a olhá-la. Dizem-me que os meus olhos eram grandes. Eu acredito, porque os olhos das crianças são sempre grandes e porque existem algumas fotografias – tiradas com a velha kodak, comprada em segunda mão num mercado de Paris. A minha mãe sentava-me na cadeira alta – eu ficava preso por correias e pela mesa de plástico à minha frente –, acertava-me o babete no pescoço, começava a dar-me colheres de papa e repetia-me sílabas. Pa-pa, ma-mã. Eu interessava-me mais pela comida do que pela conversa e continuava a abrir a boca sem um único som. A papa, claro, escorria-me pelo queixo. Já a minha mãe quase se tinha cansado e esquecido quando, num sábado – toda a gente sabe que foi num sábado, as minhas irmãs lembram-se que tinham passado parte da manhã a depenar uma galinha, a minha mãe lembra-se do tempero que utilizou antes de ter posto a galinha no forno –, agarrei-me aos pés de uma cadeira, levantei-me, fiquei muito sério a olhar para a minha mãe e, num momento de silêncio, disse: ma-mã. A minha mãe e as minhas irmãs confundiram-se numa agitação: ai, o menino; o menino falou – nessa altura, só me tratavam por «o menino». Então, quando voltassem a olhar para mim, eu abriria levemente os meus lábios pequenos e, sem mudar de expressão, deixaria cair os meus quatro dentes, um por um, no chão da cozinha. Ao acertarem nos mosaicos, fariam um som de berlindes. Ao longo de todas as suas vidas, as minhas irmãs e a minha mãe contariam essa história muitas vezes, quase sempre na minha presença. Hoje, eu lembrar-me-ia desse momento exactamente como se me conseguisse lembrar dele. A memória que não teria do momento em que disse a minha primeira palavra ter-se-ia somado à quantidade de vezes que teria ouvido essa história. Zero mais um é igual a um.
2. Primeiro beijo
São Pedro do Estoril. Catorze anos é idade mais do que suficiente para ter vontade de segurar uma rapariga nos braços e encontrar o instante certo para beijá-la. Nunca voltei a encontrar outra pessoa que se chamasse Stela. Aquela Stela deve continuar aí pelo mundo. Se hoje me cruzasse com ela na rua, obviamente que não a reconheceria. Talvez hoje me tenha cruzado com ela na rua. Ela também não me reconheceria e se alguém lhe dissesse: lembras-te?; o mais normal é que não se lembrasse. Eu lembro-me do essencial. Ela tinha a pele lisa. Era bom passar-lhe os dedos devagar pelo rosto. Era bonita ou, na altura, eu achava que era bonita. Aqueles que vinham ao Estádio Nacional participar nas finais de atletismo – na categoria de iniciados – ficavam na Colónia Balnear «O Século». A minha mãe despedia-se de mim com todas as recomendações. Eram as primeiras vezes que eu saía sozinho para dormir fora de casa. Levava uma mala com tudo: pijamas, fatos de treino, toalhas, sabonetes novos. Foi na véspera da minha prova. Sábado à noite. Foi no fim de um dos túneis que passam por baixo da marginal e que chegam à praia. Antes, tínhamos conversado, tínhamo-nos rido e, já há algum tempo que andávamos de mãos dadas. Depois, estava lá tudo: o mar, as luzes da noite a agitarem-se sobre a distância do mar. Foi de repente. Eu agarrei-a quando ela me agarrou e beijámo-nos. Tudo aquilo que apenas imaginava, aconteceu num momento. Esse momento a ser, eléctrica e mundialmente, agora. Agora nesse momento. Os carros desapareceram todos na marginal. Então, no fim desse milagre, separávamos os rostos. Por trás dos meus lábios revolvidos, a minha boca cheia de dentes soltos, dispostos sobre a língua, húmidos e mornos de saliva. Não nos olhávamos porque somos todos tímidos depois de um beijo assim. Sem que ela visse, eu cuspia os meus dentes sobre a areia. Despedia-me com poucas palavras, com a voz irregular, tapando a boca com as mãos e voltava para as camaratas onde, em beliches, dormíamos mais de vinte. Vestia o pijama que a minha mãe tinha dobrado na mala e ficava deitado sem conseguir dormir.
3 . Primeiro poema
Estava no meu quarto. Pelas escadas, chegava o som da minha mãe a fazer o jantar. A tarde tinha terminado, mas eram ainda as horas em que a noite era muito nova. O meu quarto era iluminado por uma luz amarela e cómoda. Quando eu me deitava na cama a pensar, pousava as mãos por trás da cabeça, os braços abertos, e as figuras dos posters – imóveis, colados com fita-cola à parede – pensavam comigo. Nesse dia, no quarto, estava a máquina de escrever que não sei de onde veio, mas que foi sempre um objecto importante, que se devia tratar com cuidado. As minhas irmãs tiravam-lhe a tampa grossa de plástico castanho para passarem trabalhos da escola. O meu pai, com uma técnica que todos admirávamos, trocava-lhe a fita de tinta. Nesse dia, era Outubro ou Novembro e a máquina estava no meu quarto. Nos meus pensamentos, havia palavras que se misturavam. Palavras que não tinham sentido, mas onde eu encontrava um sentido. Levantei-me e olhei para a máquina de escrever. Nesse tempo, eu escrevia com os dois indicadores apontados sobre o teclado. Procurei um papel, uma caneta e, como se existisse um deus, comecei a escrever palavras que se sucediam num sentido único, que nascia naquele momento e que brilhava diante dos meus olhos. Tenho a certeza que o meu rosto – se existisse alguém para vê-lo – estava iluminado como se estivesse diante de um lume. O ponto final chegou da maneira imprevisível como chegou cada palavra. Segurei a folha à frente dos olhos e custou-me a acreditar. Talvez chovesse na rua. Li devagar cada uma daquelas frases em voz alta. Calei-me e continuei a olhar para o papel. Então, sem dor, os dentes começavam a soltar-se lentamente das gengivas, como frutos maduros que se desprendem naturais dos ramos, como larvas que escorregam para fora dos casulos. Seria nesse momento que a voz da minha mãe, ecoando pelas escadas, me chamaria para jantar.
4. Primeiro filho
Eu estava a dar aulas. Era a última aula do dia – das dezassete e trinta às dezoito e trinta. Começava a anoitecer. Eram talvez quase dezoito horas quando uma funcionária bateu à porta e disse que me chamavam ao telefone. Eu não costumava receber telefonemas na escola. Quando atravessava o pátio, acreditava que já sabia o que ia ouvir, mas não queria ter a certeza porque, nesse tempo, sentia que havia muitas coisas acerca das quais não podia guardar nenhuma certeza. No telefone – na pequena divisão, separada do corredor por um vidro, onde guardavam o telefone –, ouvi aquilo que esperava ouvir. Voltei à sala para, antes de dizer o que quer que fosse, começar a guardar os meus cadernos e os meus livros na pasta. Já a caminho da porta, disse aos alunos que podiam sair mais cedo. Foi numa quinta-feira. Podia agora tentar reconstruir aquilo em que pensei enquanto conduzi durante trinta quilómetros. Prefiro não o fazer. Cheguei à maternidade. Foi fácil e rápido o caminho até à bata que me ajudaram a vestir porque se atava nas costas. Havia muitas pessoas – médicos e enfermeiras – na sala onde nasceu o nosso filho. Esquecemos todos os gestos e todos os conselhos das aulas de preparação para o parto e eu, inútil, fiquei junto do rosto dela apenas para nunca mais esquecer a sua expressão enquanto fazia força. Os médicos a dizerem: força. E o nosso filho. Quando lho pousaram nos braços – riscos de sangue na pele –, quando olhámos para ele, houve uma força irresistível que subiu dentro de nós, montanhas a explodirem dentro de nós, o céu inteiro de repente dentro de nós, e as lágrimas de felicidade foram também uma explosão. Levaram o nosso filho para lavá-lo com um pano húmido. Ficámos a vê-lo afastar-se na distância de alguns passos. Então, por estarem todos a olhar para ele, ninguém poderia ter visto a forma como me cairiam todos os dentes dentro da boca.
5. Primeiro romance
A minha editora a sorrir. Pessoas a darem-me os parabéns sem que fosse o meu aniversário. Várias pessoas a notarem a minha presença e a cumprimentarem-me: muito prazer. A roupa nova. Os sapatos novos. O meu nome impresso na capa de um livro. O peso desse livro na palma das minhas mãos. Eu a lembrar-me do meu pai e a procurar uma janela, a procurar mesmo uma janela, para olhar para o céu. E chegou a hora de nos sentarmos. Uma mesa e microfones. Uma voz a falar daquele mundo que era só meu, que era só meu. Uma voz a falar como nunca ninguém tinha falado. E a minha editora a sorrir. Eu talvez feliz, mas sem saber sorrir. E a minha editora a dizer palavras breves. Eu a ouvir tudo, perdido em tudo. Tão de repente, a minha vez. A minha editora a olhar para mim, as pessoas todas a olharem para mim. Então, os meus lábios comprimidos. E os meus cabelos a caírem em madeixas inteiras sobre a mesa. Tufos de cabelos a caírem ao lado e sobre as minhas mãos pousadas sobre a mesa. O som da multidão de pessoas admiradas. Vozes misturadas. E, por trás dos meus lábios contraídos, como cubos de gelo num copo, a minha boca cheia de dentes soltos.