Antes da Idade Moderna, os artistas eram artesãos organizados em grémios que tinham a função de controlar o mercado de trabalho e responsabilizar-se pela formação dos seus membros. A sua clientela em geral era os príncipes, a nobreza, dignatários eclesiásticos e a rica burguesia, compradores de seus artesanatos. A partir do Renascimento, com a fundação cada vez mais crescente das academias, a rivalidade aumentou desvinculando o artista do status de artesão, evento este com o mesmo espírito do da criação das academias científicas da época, sob o apoio dos Estados. Assim, a obra de arte passou a ser um produto intelectual; seu valor artesanal ficou para trás e o artista deixou de ser um prático e passou a ser um sábio (1). A sensibilidade de alguns príncipes, possibilitava o patrocínio nas áreas da Escultura, da Pintura e da Arquitectura, colocando estas formas artísticas em patamares de interesse e incentivo próximos aos das Ciências, da Retórica e da Poesia. O ensino teórico nas artes foi organizado, exposições com as obras dos alunos eram preparadas e as academias, em sua maioria instituições estatais, actuavam também como associações de artistas. Tudo isso sob o apoio da nobreza cortesã, classe social esta que o tanto de demasiado restrita que era, também o era adinheirada. Os artistas mais afamados tornavam-se artistas cortesãos desfrutando de regalias económicas, profissionais e, de acordo com a sua desenvoltura, tinham uma liberdade de criação endossada pelo príncipe, o que fez das Cortes da Idade Moderna, lugares de emancipação artística. Citemos o exemplo do poeta Goethe que desde 1775 esteve a serviço do duque de Weimar, dando-lhe condições de existência tranquila e liberdade para se expressar artisticamente. O espírito da época dizia que mergulhar na contemplação artística levava a estados de sublimação e adoração capazes de libertar o ser das moléstias da vida. Enquanto a Igreja perdia terreno para a razão, a Arte ganhava importância e qualificações tais que ocupavam o posto de um tipo de segunda religião.
O espírito em que os homens do século XIX estavam embebidos, era o espírito denso da Revolução Francesa de 1789, que trouxe imensas novidades ao mundo através da sua ideologia libertária, dos direitos universais do homem e do cidadão, suas participações nos processos políticos e sua liberdade crítica com respeito à imposição da classe social e situação financeira da qual se originou. A estrutura do mecenato, onde o bom artista servia a um senhor poderoso e benevolente, foi criticada pelo espírito pós 1789, ainda que lhe prometesse uma suposta liberdade de criação. Mesmo com as interpretações do mecenato, como atitudes despóticas e abusos à liberdade de criação artística, os relatos de incentivos a vários artistas confirmam que esta prática continuou ocorrendo. E a resposta dos artistas beneficiados, é claro, era dedicar suas obras e suas composições musicais e literárias aos nobres.
Enquanto as Luzes do século XVIII haviam enxertado a intelectualidade nos homens, os movimentos reformadores do início do século XIX incitariam a liberdade económica de cada um. Um conflito ideológico social se erguia por todas as partes. Os homens que não tinham direitos como cidadãos tentavam indagá-lo e tê-lo. As distinções entre homens e mulheres começavam a ser postas em causa, as reuniões políticas deixaram de ser restritas e se tornaram assuntos comuns nas ruas, tabernas, praças, etc. Ser cidadão era participar em favor do bem comum, mas também em benefício do próprio interesse, no âmbito social e do grupo (2). Devido a esse sentimento libertário implantado em cada um, o indivíduo era dono de si e como tal, teria personalidade de escolher o melhor para si. Logo, o século XIX ficou marcado por um fluxo enorme de migrações, onde as pessoas procuravam, por si, liberdade de pensamento político e religioso. Tais movimentos migratórios ocorreram tanto entre os países da Europa, quanto na saída dos cidadãos para a América, onde as perspectivas de futuro melhores foram buscadas por milhões de alemães, polacos, italianos e irlandeses, por exemplo. Podemos citar essas movimentações no Brasil, na sequência da instalação da família real portuguesa.
O índice estatístico da população urbana aumentava cada vez mais, o que provocava nas cidades a necessidade de melhoramentos em suas condições gerais de transporte, iluminação e saneamento básico. Com a transfiguração e enriquecimento social dos espaços citadinos, do ponto de vista artístico e literário, era um convite às reflexões e produções locais, sobre as questões da modernidade subjacente. Os artistas adaptaram-se às ambivalências citadinas e as suas temáticas versavam tanto sobre o homem alienado com os efeitos da urbanização, quanto a possibilidade de libertação proporcionada por esta urbanização. Por um lado, o artista respondia com contrapropostas de melhoria do mundo, concebendo a arte como uma forma de mudança (3). Por outro, o artista converteu-se num individualista, criando objectos de produção e apropriação individual e expressando a modernidade nascente. Suas obras, reflectindo sobre as condições antropológicas mais elementares, deram aos artistas um status importante num século de avanço tecnológico proeminente. Em sua dupla face artística, o indivíduo moderno que era criativo, dinâmico, inovador, livre de amarras, urbano, mercantilizado e masculino, isto é, com umas tantas qualidades racionalistas do pensamento do século XIX, podia ser também encantador, onde a magia das suas obras elevaria o público a estados de veneração religiosa.
Entretanto, esse artista do século XIX enfrentou um público diferente. Segundo Richard Wagner (4), enquanto o artista era um mortal agraciado com o fogo da inspiração divina, cuja fé em si próprio movia seu génio bem-aventurado e rico, a grande massa pública heterogénea com que ele se deparava era formada de pessoas insensíveis, vazias, tirânicas e incapazes de compreender o verdadeiro valor de sua obra. O gosto artístico dos reis, que foram mecenas dos artistas, havia deixado de influenciar o gosto do seu público. Desde finais do século XVIII, a burguesia seguia seus próprios interesses e atenções aos artistas e suas obras, deixando de seguir os olhares da Corte. Nessa virada das características de seu público, o artista descontente, por mais que transparecesse desprezar ou maldizer a nova clientela, sofria por ela e vivia nela, que era formada por uma massa inapreensível e que quando fugia dos alcances do artista, nada corria bem para ele. Tal relação era de dependência e ódio, com um público moderno formado por críticos musicais, cada vez mais profissionais, directores teatrais, elementos de orquestras e outros. O artista ainda tentava escolher o contacto com o indivíduo isolado, como um príncipe por exemplo que, por mais controvérsia fosse sua personalidade, seria uma situação mais fácil de se contornar do que com o colectivo. Por um lado a proliferação das cidades, consequentemente, dos artistas e a ausência da figura do mecenas; por outro, a possibilidade livre de criação, a sua reafirmação como um deus das obras de arte e a reconfiguração do seu público, numa massa tirana e crítica a enfrentá-lo.
João Araújo é aluno do curso de
Mestrado em Criações Literárias Contemporâneas
Évora, Portugal
Página: http://www.jpoeta.blogspot.com/
1) El hombre del siglo XIX. Versión española de: José Luís Gil Aristu. Madrid: Alianza Editorial, p. 337.
2) Idem. Ibidem, p. 17.
3) Idem. Ibidem, p. 18.
4) Idem. Ibidem, pp. 335-336.