quarta-feira, agosto 30, 2006

Satanás (Cont.)

Sem mais delongas, e tal como referi ontem, eis mais alguns excertos de Satanás, de Mário Mendoza:

Photobucket - Video and Image Hosting

- Tenho medo, padre.
- Porquê?
- Estou a enlouquecer.
- Que se passa?
- Tenho pensamentos atrozes.
- Conta-me.
- Não tenho perdão.
- Deus é infinitamente misericordioso, filho, o seu perdão não tem limites.
A igreja está vazia, sem o ruído de passos e de murmúrios provocado pelos paroquianos ao longo da nave central. Uma luz ténue entra pelos vitrais do tecto e espalha-se em brilhos multicolores que dão ao lugar um ar de irrealidade, como se se tratasse de uma imagem onírica, sonhada, e não de objectos e de lugares palpáveis e reais. O padre Ernesto está sentado no confessionário e a voz que lhe chega revela angústia e desespero, noites de insónia, medo de si próprio, uns nervos prestes a explodir e uma mente que roça o delírio e a demência de forma perigosa. (...)
- Confia em Deus, filho.
Ouve-se do outro lado uma respiração entrecortada, afogada, difícil. Finalmente, o homem decide falar:
- Não sei o que me passa pela cabeça, padre, não me reconheço, este não sou eu.
- Conta-me pouco a pouco.
(...)
- Tudo começou com a perda do meu trabalho, padre. Fiquei sem emprego e foi-me impossível encontrar outro, os meses passam e nada, não havia uma vaga em lado nenhum, algumas horas de trabalho, uma colocação temporária, nada. Perdemos o apartamento onde vivíamos e penhoraram-nos os móveis, a roupa, os electrodomésticos, tudo. Fomos viver para casa dos pais da minha mulher com as duas meninas. Pode imaginar o que foi aquele pesadelo, as brigas, as discussões, as lutas de manhã à noite.
- Sim, filho, compreendo.
- O meu sogro morreu e toda a família dizia que tinha sido por nossa culpa, que o venho tinha morrido porque já não aguentava. Passado um mês, morreu a minha sogra de tanto desgosto. A minha mulher disse-me no dia do funeral: "Tu mataste-os, deixaste-me órfã."
- Frases que se dizem por impotência, filho, com zanga e irritação.
- Depois veio a fome, padre, a fome física, as dores de estômago das minhas duas filhas, a anemia, a desnutrição, as constipações recorrentes, a falta de sono. A minha mulher disse que não pensava deixar morrer as filhas de fome e foi para a praça do mercado mendigar, apanhar do chão frutos podres, verduras esmagadas, pedaços de pão esquecidos.
- Sinto muito, filho.
- E agora cheguei ao limite, padre. Tenho sonhos que me visitam até de dia, assim que fecho os olhos. Quero libertar a minha mulher e as minhas filhas do sofrimento, não desejo mais dor para elas.
- Acalma-te.
- Quero matá-las, padre. Vejo-as a toda a hora manchadas de sangue, esfaqueadas pela minha mão. Cheguei a passear pela casa durante a noite, tremendo, febril, invadido pela vontade de matar. Entende-me, padre?
- Não te assustes, filho. Deus não permitirá uma coisa dessas.
- Quero assassiná-las, padre, mas por amor, porque não quero que continuem a sofrer desta maneira. Tenho de as ajudar, de as libertar deste horror.
- Vamos rezar juntos, filhos, vamos pedir por ti e pela tua família. Deus ouvir-nos-á.
O padre Ernesto entoa uma prece e depois repete um Pai-Nosso e uma Ave-Maria acompanhada pela voz do homem. Depois pergunta:
- Estás arrependido, filho?
- Não sei, padre, não sei se estou arrependido. Já lhe disse que tudo o que me vem à cabeça é por amor.
- Para que Deus te perdoe, tens de estar arrependido.
- Pois...
(...)
O que precisa fazer é arranjar quanto antes um trabalho àquele homem, seja no que for, e, entretanto, recorrer aos fundos de emergência da igreja e da caridade alheia para arranjar um sustento que permita às suas duas filhas, à mulher e a ele próprio, alimentar-se e recuperar da inanição e da doença. Depois será muito mais fácil derrotar aquela força maligna que se apoderou do seu espírito, aqueles instintos criminosos disfarçados de bondade e benevolência.
Uma mulher obesa que vem a subir pela mesma rua levanta a mão direita pedindo-lhe para parar e diz-lhe com a voz alarmada e inquieta:
- Que sorte encontrá-lo, padre.
A expressão faz o padre Ernesto sorrir.
- A mim?
- Sim, padre.
- E pode saber-se porquê?
A mulher recupera o fôlego e diz-lhe:
- Estão à sua procura por toda a parte Acaba de me dizer a minha filha.
- E quem precisa de mim com tanta urgência?
- As pessoas estão reunidas na igreja.
- A missa é só às sete - diz o padre Ernesto, perplexo.
- Estão à sua espera há uma hora.
- Mas o que aconteceu?
- É melhor ir depressa, padre.
(...)
O padre Ernesto passa por entre o povo sem cumprimentar ninguém e entra na igreja com a suspeita de saber quem o espera dentro do recinto sagrado. Ajoelhado diante do altar com a cabeça inclinada sobre o peito e com uma faca ensaguentada no chão a poucos centímetros dele, um homem magro e encurvado parece estar a afogar-se na torrente do seu próprio pranto
.

Photobucket - Video and Image Hosting

Maria chega à rua e percorre alguns quarteirões até à avenida principal. Estica o braço e um taxi pára junto dela para a recolher. Abre a porta traseira e senta-se com os joelhos unidos e com a carteira no colo.
- Para a Carrera Quince com a Calle Setenta y Seis, por favor.
- Claro, boneca - diz uma voz amável e juvenil.
Fecha a porta do taxi e observa pela primeia vez o aspecto do taxista. É um homem de uns vinte e quatro anos, com uns jeans e uma camisola de algodão desportiva, que a observa de vez em quando através do espelho retrovisor. Maria apercebe-se de que a cadeira do co-piloto está inclinada para a frente, permitindo ao passageiro esticar as pernas à vontade.
O taxi roda pela Avenida Diecinueve em direcção ao Sul. No semáforo da Calle Cien, em vez de voltar à esquerda para se dirigir à Carrera Once, o condutor volta à direita, na direcção da Auto-Estrada Norte.
Maria repara no engano:
- Para onde vai?
- Vou pela auto-estrada.
- E porque não vai pela Carrera Once?
- Por aqui é mais rápido.
(...)
O taxi passa a Calle Noventa y Dos e segue em frente. O homem conduz a uma velocidade média, sem pressa, como se gozasse da tensão crescente que se sente dentro do automóvel.
- És muito pouco conversadora, boneca.
- Tenho pressa.
- São assim as meninas ricas, não gostam de falar com os pobres.
- Eu não sou nenhuma menina rica.
- Deixe-se de tontices, lourinha - a voz é agora agressiva, dura, intimidativa. - Se fosse pobre não andaria na farra na Zona Norte, nem viveria onde vive, nem usaria a roupa que usa.
- Engana-se...
- Cale a boca, lourinha, que estou a ficar com mau génio.
- Faça o favor de parar. Vou sair.
- Ah sim?
- Pare aqui, por favor.
- Você julga que pode dar ordens. Não maninha, enganou-se. Aqui quem dá as ordens sou eu.
A determinada altura, o banco do passageiro levanta-se e, da parte dianteira do carro, um homem que estava agachado e bem escondido aparece como por magia e por artes de prestidigitação. É da mesma idade do condutor e tem uma navalha na mão direita.
- O que é isto? - pergunta Maria com o coração a bater aceleradamente.
- Surpresa - diz o homem com uma voz esganiçada - , eu sou o coelho que estava dentro da cartola.
(...)
O carro atravessa a Carrera Treinta, a Avenida Sesenta y Ocho e a Avenida Boyacá e pára num descampado, nos arredores de Bogotá. O condutor desliga o motor. O silêncio da noite é total. Um ou dois carros ocasionais ouvem-se de vez em quando ao longe. O co-piloto ordena:
- Vamos para baixo, loirinha.
Maria sente que as pernas não lhe respondem muito bem. O medo mantém-na paralisada, com os músculos imóveis e entorpecidos.
- Não ouviu, loirinha? Acorde.
Acaba por conseguir abrir a porta e sair do carro desajeitadamente. Em pânico, observa os números da matrícula pintados num dos lados do taxi. Os dois homens saem sorridentes e aproximam-se esfregando as mãos. O que vinha a conduzir tira uma moeda e pergunta ao outro: - Cara ou coroa?
- Coroa - responde o da navalha.
A moeda dá voltas no ar e cai na palma da mão do condutor.
- Cara - diz este. - Calha-me a mim primeiro.
Aproxima-se de Maria e ordena-lhe:
- Vamos, meu amor.
- Por favor, não me façam mal.
- Vamos - torna a dizer o homem, empurrando-a até a deixar reclinada no banco traseiro do carro. Senta-se ao lado dela e fecha a porta.- Vamos, tiro-lhe a blusinha para agarrar nessas tetas.
- Peço-lhe.
(...)
Tira o casaco com brusquidão, dá um puxão, rasga-lhe a blusa e atira-a para o chão do carro, puxa o soutien para cima e começa a beijar-lhe e a acariciar-lhe os seios, respirando como um animal.
- Que par de tetas tão boas, bonequinha.
Maria não consegue mexer-se nem dizer nada. Vê o homem beijá-la e apalpá-la mas não sente nada, é como se o seu corpo pertencesse a outra mulher e ela estivesse a presenciar a sua violação.
(...)
Despe-se rapidamente e, com o membro erecto, inclina-se sobre o corpo de Maria.
- Abre as pernas, bonequinha.
Separa-lhe as pernas à força e penetra-a violentamente, com a respiração entrecortada, como se estivesse a afogar-se. Repete como um autómato enquanto mexe as ancas de cima para baixo:
- Puta, puta, puta...
Maria não sente nada. Olha para o tecto do carro com o olhar perdido, alheado, desligado da realidade. O homem emite um longo gemido, fica imóvel um instante e senta-se de novo junto ao corpo da rapariga. Nessa altura repara nas manchas de sangue nas pernas dela, no banco, no seu pénis - agora flácido - e nos testículos.
- Meu amor, não me disseste que eras virgem.
Veste-se e abre a porta do carro. O homem da navalha está encostado à mala, passando a navalha de uma mão para a outra.
- Mano, a bonequinha era virgem.
- Sim?
- Tirei-lhe os três, imagina a delícia.
- Deixa passar, mano, que agora é a minha vez - diz o co-piloto, entrando no carro de sopetão.
Fecha a porta, pousa a navalha no chão e tira a roupa sem dizer uma palavra. Agarra Maria pelos ombros e dá-lhe a volta, pondo-a de barriga para baixo.
- Vou tirar-lhe a outra tampa, boneca, a do cuzinho.
Afasta as nádegas avantajadas de Maria com a mão esquerda, agarra no membro com a direita e mete-o pouco a pouco pelo ânus dela até o sentir bem aberto e dilatado. Não chega a durar cinco segundos e ejacula com os olhos fechados. É um acto rápido, prematuro. Maria chora com a cara afundada no banco. O tipo levanta-se, veste-se, agarra na navalha, dá uma palmada no traseiro de Maria e diz-lhe:
- Obrigado por esse rabo, boneca.
Sai do carro e dirige-se ao seu companheiro:
- Despachado, mestre.
- Que tal? - pergunta-lhe o condutor, aproximando-se.
- Bom, fui-lhe ao cu.
- Outra que perdeu a virgindade.
- Sim, mano, ficou a sangrar pela frente e por trás.
- Missão cumprida, vamos.
Fazem sair a sua vítima e deixam-na jogada no prado com a roupa junto dela. O táxi desaparece na escuridão.
Um vento frio e gelado obriga Maria a voltar a si. Veste-se com as mãos rígidas devido à baixa temperatura e calça os sapatos. Uma dor aguda, tenaz, percorre-lhe o corpo todo. Andando com dificuldade, aproxima-se da avenida para pedir ajuda. Lá em cima, no céu, uma lua cheia ilumina a noite como se fosse um refractor gigantesco rompendo as trevas.


Photobucket - Video and Image Hosting

A campainha do telefone arranca Andrés das suas reflexões. Deixa a gravura em cima da secretária e levanta o auscultador:
- Está?
- Andrés?
- Sim, sou eu.
- É a Angélica.
- Olá, tudo bem?
- Preciso de te ver - diz ela com a voz num sussuro.
- Agora?
- Podemos conversar esta tarde?
- Não pode ser amanhã?
- É urgente.
- Aconteceu-te alguma coisa?
- Preciso de falar contigo.
- E tem de ser hoje?
- É muito importante, Andrés.
- Okay, diz-me onde.
- Na bilheteira do teleférico que sobe até Monserrate.
- Monserrate hoje?
- É um sítio tranquilo, sem gente, sem carros. Tenho de te contar uma coisa muito importante.
- A que horas?
- Achas bem às três?
- Combinado, às três na bilheteira.
- Não faltes, Andrés.
- Oiço-te como se fosse uma chamada de longa distância. O que te aconteceu?
- Prefiro dizê-lo pessoalmente.
- É grave?
Entre gemidos e suspiros ouve-se a voz longínqua dela:
- Muito.
(...)
Uma chuvinha começa a cair sobre a cidade às duas e meia da tarde. Andrés vai num táxi pela Avenida Circunvalar, contornando as montanhas, e observa as gotas de água batendo contra os vidros do carro. Interroga-se sobre que diacho terá acontecido a Angélica e deseja intimamente que não seja uma situação irremediável, mas antes um sofrimento passageiro, uma prova que depois de superada não deixa marcas indeléveis nem sequelas destrutivas. Às duas e cinquenta paga o que indica o taxímetro e desce diante da bilheteira do teleférico de Monserrate.
Angélica está à espera dele sentada nas escadas da antiga estação. Assim que o vê, atira-se a ele e abraça-o sem o largar, como se fossem enviá-los para países diferentes e estivessem a despedir-se nas partidas internacionais do aeroporto. Ele afasta-a um pouco para lhe dar um beijo e é nessa altura que descobre os pontos violáceos na cara dela. São manchas pequenas, minúsculas mas bastante visíveis, como se a pele manifestasse os rigores de uma varicela ou de um sarampo.
- O que te aconteceu? - pergunta-lhe sem a beijar.
- É disso que te quero falar.
(...)
Um longo silêncio augura uma mudança no rumo da conversa. Angélica pergunta de chofre:
- Porque me pintaste daquela maneira?
- Referes-te ao retrato?
- Sim.
- Não sei.
- Mas porque me pintaste como Proserpina nos infernos?
- Não sei, Angélica, pareceu-me ver em ti algumas parecenças com o quadro de Rossetti e quis prestar-lhe uma homenagem.
- Não estás a ser sincero comigo. Isto é muito importante para mim, não me evites. Diz-me por que apareço no Hades com as faces picadas e carcomidas.
- Não sei, juro-te...
- Tu não querias pintar-me.
- Não.
- Porquê?
Andrés apercebe-se da angústia que aflige Angélica, da necessidade que tem de uma resposta sincera e transparente. Não se pode furtar a isso e responde:
- Há algumas semanas fiz um retrato do meu tio Manuel. Pintei-o com algumas malformações na garganta. Telefonou-me passados alguns dias dizendo-me que tinha um tumor cancerígeno muito avançado precisamente nessa zona. Está em tratamento mas não melhora. O mais certo é morrer rapidamente.
- E porque o pintaste assim?
- Não sei, Angélica, sinto-me como se estivesse num pesadelo, é uma força irracional que de repente se apodera de mim, como se estivesse em transe, possesso, invadido por imagens que se impõem na tela. Tive tanto medo que nunca mais quis voltar a fazer retratos.
- Por isso não querias pintar-me.
- Sim.
- E por isso ficas com febre e adoeces.
- O desgaste deixa-me prostrado.
Angélica passa as mãos pelo cabelo, observa-o de soslaio e pergunta-lhe:
- O que sentiste quando estavas a pintar-me?
- A mesma coisa, vi-te com olheiras, cheia de chagas e o pincel encarregou-se de dar forma, na tela, a essas visões.
(...)
- Tenho de contar-te uma coisa muito grave - diz-lhe Angélica. Ele observa-lhe a pele da cara manchada pelos pequenos pontos que a desfiguram.
- Diz.
- As borbulhas que tenho são uma doença que se chama Molusco Contagioso.
- O que é isso?
- É uma doença de pele.
- Mas tem cura, imagino.
- Não é essa a questão.
- Não compreendo.
(...)
- Explica-me por que razão não é importante curar-se - insiste Andrés baixando a chávena e colocando-a na mesa.
- Porque o Molusco Contagioso é apenas uma manifestação de uma doença muito mais grave.
- Como assim?
Ela deixa de lado o café e diz em voz baixa:
- Fiz alguns exames e tenho sida, Andrés.
Angélica baixa a cabeça e limpa as lágrimas com a mão. Andrés continua a sentir que não está na realidade, mas num pesadelo do qual desajaria acordar quanto antes.
- Tens a certeza?
- Fiz um segundo exame e também deu positivo.
- E sabes desde quando és seropositiva?
- Não.
- Isso significa que também posso estar contagiado.
- Nós usámos sempre preservativo, lembras-te? - diz ela, deixando de chorar e assoando o nariz com os guardanapos da mesa.
- Então?
- Creio que foi depois, Andrés.
- Com quem estiveste durante este tempo?
- Esse é o problema - Angélica continua a falar num tom de voz muito baixo, quase em segredo.- Quando acabámos a nossa relação senti que ia morrer, não queria fazer nada, nem sequer levantar-me da cama. Mas depois odiei-te, senti que me tinhas ferido injustamente.
- Não foi isso, Angélica.
- Eu sei, eu sei, mas foi o que senti nessa altura. Quis vingar-me. Então comecei a ir para a cama com um e com outro. Ia a todas as festas e acabava na cama com o primeiro que mo propusesse. Como estava a tomar anticoncepcionais era-me indiferente que o tipo usasse preservativo ou não. A maior parte das vezes estava bêbada ou drogada. Cheguei a estar com dois ou três homens no mesmo dia.
Andrés suspira sem dizer nada. Ela conclui:
- Fui também para a cama com vários estrangeiros. Julgo que foi um deles que me contagiou.
Soam os sinos da igreja. Andrés ouve aquele ruído metálico atravessar o ar invernoso da tarde e sente, num instante revelador, que é novamente dono de si próprio, que chegou finalmente à realidade.


Photobucket - Video and Image Hosting

O padre Ernesto, que esteve a rezar cerca de meia hora, levanta-se, benze-se e abre a porta do quarto para se dirigir ao escritório da casa sacerdotal. Irene, a jovem encarregada da limpeza e da cozinha, diz-lhe no corredor:
- A dona Esther já está à sua espera no escritório.
- Obrigado, Irene - responde o padre, apressando o passo e, por alguns instantes, os seus olhos detêm-se no corpo esbelto e voluptuoso da jovem.
Efectivamente, na salinha que faz as vezes de escritório, está uma mulher volumosa, de uns quarenta anos, vestida de preto e com os olhos injectados de sangue. Levanta-se para o cumprimentar.
- Boa tarde, padre.
- Boa tarde, filha, senta-te.
O sacerdote instala-se numa confortável poltrona diante dela, abre os braços e diz numa voz afectuosa e amigável:
- Bom, diz-me em que te posso ajudar.
A voz da mulher é apagada, ténue, muito fraca, revelando uma enorme fadiga e longas noites de insónia.
(...)
- Estou desesperada, padre, já não aguento mais.
- O que se passa?
Ela abre a carteira, tira um lenço creme e limpa as lágrimas.
- Aviso-o de que não quero que ninguém fique a saber disto, padre, não quero um escândalo, nem que a minha casa se transforme num foco de bisbilhotices e mexericos.
- O que me contares não sairá destas quatro paredes.
- Não quero andar por aí nas bocas do mundo.
- Bem, que se passa?
- Comigo nada, padre, é com a minha filha.
- Quantos anos tem ela?
- Acabou de fazer quinze. É uma beleza.
- Tem irmãos?
- Não, padre, é filha única.
- Tem uma boa relação convosco?
- Vivemos as duas sozinhas, padre. O senhor sabe como são os homens, vão semeando filhos e depois abandonam-nos sem que ninguém os condene.
- É uma rapariga ajuizada, sossegada?
- É um anjo, padre, se o senhor a visse... As freiras do colégio não se cansam de a elogiar.
- Então qual é o problema?
A expressão da cara da mulher transforma-se, ela abre os olhos, cora, franze a testa de uma maneira quase cómica, burlesca, e diz:
- As vozes, padre, as vozes...
- Que vozes?
- A minha menina está possuída por vozes que falam de coisas horríveis.
- Como?
- Pessoas malignas, espíritos do mal, padre, que falam através dos lábios da minha menina.
- Não a compreendo - diz o sacerdote, franzindo o sobrolho.
- É quase sempre à noite, quando se vai deitar. As pessoas entram dentro dela e começam a dizer obscenidades, a insultar, a prever factos terríveis.
- A senhora está a dizer-me que a sua filha está possessa?
- Por demónios, padre, por espíritos que vêm do inferno.
- Como é possível?- pergunta o padre Ernesto, agitando os braços e a cabeça negativamente.
- Sim, padre, tem de a ver com os seus próprios olhos.
- Já não existem possessões neste século, senhora. Tem de a levar a um hospital para que lhe façam exames neurológicos e psiquiátricos.


Photobucket - Video and Image Hosting

Chegam diante de uma casa colonial localizada no centro de uma ruela mal iluminada. Uma trepadeira cobre uma grande parte da fachada principal.
- É aqui - diz a mulher, metendo uma chave na fechadura de uma porta de madeira.
Assim que atravessa o umbral, o padre Ernesto sente o aroma delicioso de um conjunto de flores vistosas que brilham com a pouca luz que chega até ao jardim interior da residência. A seguir descobre o cheiro exalado pelas paredes, pelos tectos e pela madeira das portas e dos móveis que decoram o local. Reconhece esse odor porque é o mesmo que se respira em mosteiros e conventos, em museus, nas câmaras municipais rurais, nas velhas herdades esquecidas e em certos recantos da sua própria igreja quando desaparece o efeito dos detergentes e dos desinfectantes. Finalmente, quando vai subido as escadas que levam ao primeiro andar, o seu olfacto regista um cheiro nauseabundo e desagradável: o cheiro das canalizações subterrâneas, o das águas negras que viajam pelos esgotos interiores da cidade, um cheiro a fedores corporais acumulados, urina, excrementos, vómitos, sémen e fluxos menstruais. São tão intensas aquelas emanações que vêm de cima que o padre Ernesto sente um ardor no interior dos olhos. E é nesse momento que tem um pressentimento, um palpite, a suspeita de que uma presença anormal está com eles dentro de casa.
(...)
Dona Esther pára diante da porta de um dos quartos do primeiro andar, respira profundamente e diz:
- Vou deixá-lo sozinho com ela, padre. A esta hora já está deitada.
(...)
Ela volta-se e desce as escadas sem olhar para trás. O padre Ernesto abre a porta e respira um ar pestilento, húmido, como se estivesse a entrar de repente num buraco de imundícies, numa cloaca imunda ou num dos mais sujos recantos do inferno. Sente vontade de vomitar mas consegue controlar o seu corpo pouco a pouco, inspirando devagar com a boca semiaberta, descontraindo o corpo, acostumando-se às rajadas fétidas e pestilentas. Fecha a porta e senta-se na única cadeira que há no quarto. Na cama, deitada de barriga para cima, está a rapariga com uma camisa da noite branca que a cobre até aos tornozelos.
(...)
- Agrado-lhe, padre? - diz de repente uma voz aflautada, felina, e a jovem ergue as pálpebras deixando a nu uns cintilantes olhos azuis.
- A tua mãe quer que conversemos.
- Não respondeu à minha pergunta.
- És muito bonita - garante o padre com calma, sem grande convicção, tirando importância ao que está a dizer.
- Deseja-me?
- Não vim ofender-te, filha.
- Sei que lhe agrado, padre, que quer tocar-me, acariciar-me.
- Estás enganada.
- Aproveite padre, toque-me onde quiser.
- Não me insultes dessa forma. Lembra-te que sou um sacerdote.
Ela sorri com uma careta perversa e a voz que o padre Ernesto ouve a seguir é grossa, varonil, como se um homem adulto tivesse acabado de entrar no quarto e estivesse também na cama, junto dela.
- Qual sacerdote qual carapuça, cão lascivo, verme asqueroso.
Um arrepio percorre as costas do padre Ernesto de cima a baixo.
- Pensas que não sei quem és? Achas que me vais enganar com os teus sermões piedosos? Olha o que vou fazer para ti, porco.
A rapariga levanta a camisa da noite até ao umbigo, mete a mão numas cuecas pequenas e insinuantes e acaricia o sexo com os dedos da mão direita.
- Preciso de um homem, padre - a voz torna a ser a de uma jovenzinha delicada.
- Já chega - diz o sacerdote com a voz agitada.
Ela tira a mão e explode numa gargalhada grotesca.
- Eu sei quem és, porco - continua a dizer a mesma voz.
- Não sei de que estás a falar - afirma o sacerdote transtornado, enjoado, com o estômago agitado.
- O pedacito de carne que tens entre as pernas dá-te trabalho, hã?
- Cala-te!
- Por aí ofendes a tua fá, hã?... Cabrãozinho libidinoso...
(...)
A voz grossa volta a surgir e termina dizendo:
- Filho da puta, criminoso, és um cachorro cheio de pecados.
O padre Ernesto não aguenta mais, levanta-se e, com um salto, chega até à porta, abre-a e sai do quarto com falta de ar, chorando. O pior é que, ao fechar a porta, repara numa forte erecção que lhe levanta as calças e que as avoluma de uma forma vergonhosa, contra a sua vontade.



(Mario Mendoza- Ibidem. Fotografias de William Ropp)


Com este post concluo a apresentação de Satanás. Espero que tenham gostado e que as minhas escolhas tenham sido suficientemente significativas para vos atrair para a leitura integral da obra. Um abraço a todos :)