sexta-feira, junho 08, 2007

Reflexos do gozo escópico do macabro no espelho da Sociedade de Consumo - Sobre a exposição "O corpo humano como nunca o viu"

O gozo sempre se produziu do lado onde um estranho lugar gravita para além do limite, do visível, do conhecido, do experimentado. Não é por acaso, neste sentido, que os astrónomos procuram ver sempre além do visível possibilitado pelos seus recursos técnicos. É de um fascínio na aposta de um mais além do visível que se nutre o feitiço/fetiche (como a Maria Belo nos recorda, a palavra fetiche, utilizada nas várias línguas, deriva da palavra portuguesa feitiço).

Lembremos que, por exemplo, para Marx a feiticização da mercadoria, no qual as coisas são transformadas em objectos de consumo, é o sintoma do capitalismo, ou que a psicanálise considera "que o feitiço é de certa maneira uma imagem" (Lacan), acrescentemos, uma imagem especial, porque investida com um determinado poder, valor, atributo ou estatuto, investimento que tem a importância de fazer desmentir (Verleugnung) algo que no Real adveio como traumatizante. Tentarei esboçar ao longo do texto a relação entre o feitiço, a imagem e o trauma em função do mais-além do gozo.

Começarei, por ora, por abordar a questão do gozo. Cabe dizer que a relação do sujeito com o seu gozo se assemelha à de alguém arremessado no interior nave espacial numa aventura mortal rumo ao desconhecido, à aposta de um planeta in-visível, a um gozo que se supõe existir mesmo sem se saber como existe (temos como exemplo, a aventura dos Descobrimentos marítimos portugueses).

Sem dúvida que neste 'algo' que no sujeito procura ir sempre mais além, a ciência ocupa hoje um papel fulcral. Um dos imperativos existenciais que a move é a injunção de ultrapassar decrépitos e aborrecidos gozos na descoberta de novos, atingir o mais-além futuro do descoberto mais-além recente. O certeiro enunciado de Merleau-Ponty que aqui se aplica, "o achado é o que clama por novas buscas", traduziria-o ao modo de um aforisma lacaniano: "o gozo é o que clama por novas buscas".

Noutras palavras, é o caos, no sentido do que está fora da lógica, que, na verdade, ordena a ordem. Logo que o caos deixe de o ser, submetido seja à ordem filosófica, religiosa, matemática ou outra qualquer, inevitávelmente se arrasta em direcção a um novo caos que se gerou ao domesticar o anterior. Talvez tenha sido este movimento produtor de um sempre renovado mal-estar na civilização que Freud como ninguém soube analisar.

A ciência não é excepção a esse movimento: ao mesmo tempo que introduz uma nova ordem, introduz um novo caos, um novo Fora, como diria Deleuze, à sua lógica. O que coincide pelo avesso, sem que os teóricos que concebem existência do Desejo como uma harmonia fundamental estejam de acordo, com o sujeito: ele, no seu íntimo como irreconhecivelmente exterior, procura o caos, a desordem, a des-harmonia a serem experimentados. Ou seja, a experiência de um gozo desconhecido que gravita num lugar além do visível, mas que, contudo, só poderá ser pensado como pertença ao mais íntimo do sujeito. Como diria Deleuze, "nesse fora mais longínquo do que qualquer mundo exterior, pois é um dentro mais profundo do que qualquer mundo interior", é esse gozo que surge pelo lado da inquietante estranheza, do Unheimlich de Freud, como o lugar do inabitante ek-sistente, onde a des-harmonia é o acorde principal que, mesmo fora de tom, organiza a partitura sem que nela esteja incluída. Não é essa des-harmonia que o Zaratustra de Nietzsche visa quando afirma que - "o que se pode amar no Homem é ser ele de transição e perdição"?

É do lugar do inabitante que urge falar, na medida em que lhe preside hoje com a ciência a captura numa vontade de gozo inédita, de ultrassagem de tudo o que foi dito e feito em direcção ao radicalmente autêntico novo, um novo que, para parafrasear Lacan, se apresenta "menos inabitável que inabitante, menos inabitual do que inabitado" por sua virtualidade.

"O corpo humano como nunca o viu" é o nome do acontecimento em causa. Consiste numa exposição de corpos e orgãos humanos reais e sem vida, preservados através de um processo de polimerização desenvolvido pelo anatomista alemão Gunther von Hagens. Tal processo tem como propósito mostrar o corpo humano tal como ele é na realidade, como nunca visto, segundo é dito.

Pelo menos esta exposição tem o mérito de despertar algo comum em todos nós: curiosidade, uma curiosidade, porém, fugidia às palavras. Ora, tentemos, pois, capturar nas palavras o que aqui está em causa.

Parece-me que, sobretudo, o que se expressa por intermédio destes cadáveres em exposição, é possibilitar a massificação do gozo do olhar para a face da morte mas sem tudo aquilo que nela causa horror, o seu Real, o que torna o evento um autêntico espectáculo bizarro, um freak show denegadamente bizarro. Este é um exemplo ilustrativo do que Alain Badiou designou como a questão fulcral dos nossos tempos: a Paixão pelo Real. É também essa Paixão pelo Real que se alimenta da escopofilia na industria pornográfica, por exemplo.

Como indica Zizek, "é nesse ponto extremo que se produz a inversão: quando nos aproximamos mais do objecto do desejo, o confronto directo com o real da carne nua transforma o fascínio (...) em repulsa."

Neste sentido, é a ciência que permite ao discurso do capitalismo fazer funcionar um feitiço, não mais mágico mas científico, que desminta (Verleugnug) o confronto com o real da carne e que impeça a inversão pela qual surge a repulsa. O ponto de recalcamento onde ocorre uma 'parada da imagem' indutora do feitiço, é o ponto limite onde o sujeito poderá continuar olhar objecto mas sem ser afectado pelo que do Real promulgaria essa inversão.

Fundamental para se entender esse ponto de recalcamento, é o deslocamento do recalcamento que a ciência institui do Simbólico para o Real. É o Real que se trata de recalcar radicalmente e não mais o que no simbólico insiste. É deste modo que a Paixão pelo Real que o discurso do capitalismo introduz é, na verdade, um semblante, um espectáculo da aparência, que mais não faz do que des-governar o sujeito face a si próprio. O paradoxo é que a verdadeira paixão vai instituir-se como um acto de desespero face à Falta de Real. Temos os casos dos suicídios, do fenómenos das adolescentes que se cortam, da ingestão excessiva de alimentos, do consumo de drogas, do sexo promíscuo, da condução a alta velocidade, dos vários comportamentos inerentes ao que Ulrich Beck apelidou de Sociedade do Risco, etc, que são ilustrativos disso. Que melhor meio do que através do corpo, na medida em que afectado por uma inerente corporeidade passível da morte, do sexo, do traumatismo físico, da amputação, das cirroses hepáticas, das doenças cardiacas, da SIDA, etc, para atingir o Real que lhe é sub-traído. Essas são as verdadeiras e desesperadas paixões pelo Real, que caminham a par e passo com a virtualização do mundo no mundo do espectáculo. Quanto a isso, parece-me que as práticas pegadógicas e de incremento da percepção de risco arriscam-se a ser nada mais do que práticas higienizadoras meramente em função de estatísticas e alegremente desconhecedoras do que faz funcionar essa 'Sociedade do Risco'.

Curiosamente, como nos diz Guy Debord na 2ª tese da sua "Sociedade do Espectáculo", o "espectáculo em geral , como inversão concreta da vida, é o movimento autónomo do não vivo". Somos reenviados para o lugar do inabitante. O que está em causa nesta exposição, como algo representativo da forma como se olha a morte hoje, é que não é do morto que se trata nessa exposição: é de nós próprios como não-vivos, como de alguém que lentamente deixa de viver no real, para aderir de livre vontade a um sono dogmático-virtual. Somos nós que, na sociedade do espectáculo capitalista, vamos ocupando o lugar do inabitante sem que seja ele a habitar em nós como um Fora. O lugar do inabitante tende hoje a ser inabitável na 'Sociedade do Espectáculo': ele é o próprio lugar do espectador.

Consideremos o sonho, para avançar um pouco mais. No sonho, a função do despertar permite que o sujeito não se confronte com o horror que com ele se vai entrecruzar. O ponto onde no sonho se produz a inversão do fascínio para a repugnância, para o horror, para o pesadelo, é o ponto no qual o sujeito deveria ter acordado mas continuou a dormir, é o ponto onde 'algo' do Real se manifesta no sonho. No discurso do capitalismo o que está em questão é permitir que o sujeito continue a dormir acordado, que não encontre o Real que o faria despertar e ocupar o seu lugar como sujeito e não como subserviente de um feitiço.

No nosso caso, trata-se do Real da decomposição do cadáver que é desmentido, e com ele a própria morte como traumática, de forma a que possa ser presenciada como um espectáculo.

Interroguemo-nos: será que é uma mera curiosidade que move os visitantes a exposição? Será que o primado do "ver é saber", o princípio moral base defendido pelos organizadores da exposição, é, na verdade, o princípio da exposição? Será que podemos realmente subtrair o cadáver cientificamente esquartejado dessa equação?

Deixemo-nos de subtilezas, pois podemos imaginar os ganhos astronómicos que esta exposição gera. O que está em questão para uns, para quem organiza a exposição, é a questão monetária, à custa do que é colocado em jogo para os outros, os visitantes, o trauma e os fastasma imbricados no real da morte. Se fosse meramente o saber que proporciona a visão, com certeza que a ciência possibilitaria muitas formas de concretizar essa experiência, não fosse a incógnita excluída, o gozo escópico da morte.

O que este gozo dá a ver é também aquilo que Bernard Stiegler chamou a miséria do simbólico, a miséria pela qual o sujeito foge abandonado a um certo estilo de compulsão de repetição, a miséria onde o que está em causa não são representações mas o que Charles Melman chamou de uma "presentação do objecto: ele é o limite do que pode ser ofertado à visão".

Este limite, no qual é a coisa e não a sua representação que é ofertada, permite-nos fazer um ponto de situação sobre a nossa relação com o saber-viver, considerando-o pelo entrelaçamento entre o simbólico, o real e o imaginário, por onde se entranha um vinculo à morte, onde Heidegger fez advir o seu ser-para-a-morte, e ao sexo, do qual Lacan extrai a não existência da relação sexual. Ora, a morte tem lugar na economia subjectiva como uma consequência do recalcamento primordial, recalcamento primevo que consiste na forma pela qual a nossa natureza animal é subvertida ao sermos atravessados pela linguagem, e que se reifica no interior da própria ritualização que envolve o acto fúnebre. É o corpo morto o que fica recalcado, coberto pela terra enlaçada com as últimas palavras, com uma última despedida. É com essas palavras que é colocado um ponto final a esse corpo, com o real da sua corporeidade, no mundo dos vivos. São essas palavras que o fazem existir simbolicamente no mundo dos vivos, na medida em que selam num acto simbólico o seu lugar último, o seu destino.

A presentação do cadáver é o apanágio de uma época onde a miséria do simbólico condena à des-sacralização a própria morte, des-sacralização contra a qual Antígona pagou com a própria vida; é o próprio limíte do inumano, onde um feitiço tecnológico permite que se sustente uma imagem volatilizadora do traumático, supressão esta do traumático que poderá ser lida nos termos hegelianos, pois trata-se de uma supressão que conserva (Aufhebung), que afirma que alí existe um Real desmentido que retorna, doravante, sob a forma irreconhecível de uma paixão desesperada, excessiva, hiper, como é o apanágio da nossa contemporaneidade.

É o próprio morto que vive literalmente entre os vivos, não no simbólico ou no imaginário, mas no Real, de exposição em exposição, signo perfeito do desnorteamento do sujeito que já não sabe como olhar para morte, como se posicionar face ao Real da morte, como se situar face à tragédia do seu destino.

A época da miséria do simbólico, a hipermodernidade como é chamada, é isso mesmo: a higienização e estetização do gozo e a des-sacralização do simbólico. Quem sabe se a própria decomposição cadavérica não servirá no futuro para uns, como factor de lucro, e para outros, como fonte de gozo, de um gozo que já não é o do in-visível mais além mas o seu simulacro, por onde se limita o próprio mais-além intrínseco ao acto de gozar a uma massificação generalizada de um in-visível virtual.